Tudo sobre Clarice Lispector.

Clarice Lispector





"Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada... Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro..."

1920
- Clarice Lispector nasce em Tchetchelnik, na Ucrânia, no dia 10 de dezembro, tendo recebido o nome de Haia Lispector, terceira filha de Pinkouss e de Mania Lispector. Seu nascimento ocorre durante a viagem de emigração da família em direção à América.

1922
- Seu pai consegue, em Bucareste, um passaporte para toda a família no consulado da Rússia. Era fevereiro quando foram para a Alemanha e, no porto de Hamburgo, embarcam no navio "Cuyaba" com destino ao Brasil. Chegam a Maceió em março desse ano, sendo recebidos por Zaina, irmã de Mania, e seu marido e primo José Rabin, que viabilizara a entrada da biografada e de sua família no Brasil mediante uma "carta de chamada". Por iniciativa de seu pai, à exceção de Tania — irmã, todos mudam de nome: o pai passa a se chamar Pedro; Mania, Marieta; Leia — irmã, Elisa; e Haia, em Clarice. Pedro passa a trabalhar com Rabin, já um próspero comerciante.

1925
- A família muda-se para Recife, Pernambuco, onde Pedro pretende construir uma nova vida. A doença de sua mãe, Marieta, que ficou paralítica, faz com que sua irmã Elisa se dedique a cuidar de todos e da casa.

1928
- Passa a freqüentar o Grupo Escolar João Barbalho, naquela cidade, onde aprende a ler. Durante sua infância a família passou por sérias crises financeiras.

1930
- Morre a mãe de Clarice no dia 21 de setembro. Nessa época, com nove anos, matricula-se no Collegio Hebreo-Idisch-Brasileiro, onde termina o terceiro ano primário. Estuda piano, hebraico e iídiche. Uma ida ao teatro a inspira e ela escreve "Pobre menina rica", peça em três atos, cujos originais foram perdidos. Seu pai resolve adotar a nacionalidade brasileira.

1931
- Inscreve-se para o exame de admissão no Ginásio Pernambucano. Já escrevia suas historinhas, todas recusadas pelo Diário de Pernambuco, que àquela época dedicava uma página às composições infantis. Isso se devia ao fato de que, ao contrário das outras crianças, as histórias de Clarice não tinham enredo e fatos — apenas sensações. Convive com inúmeros primos e primas.

1932
- É aprovada no exame de admissão e, junto com sua irmã Tania e sua prima Bertha, ingressa no tradicional Ginásio Pernambucano, fundado em 1825. Passa a visitar a livraria do pai de uma amiga. Lê "Reinações de Narizinho", de Monteiro Lobato, que pegou emprestado, já que não podia comprá-lo.

1933
- Seu pai prospera e mudam-se para casa própria, no mesmo bairro.

1934
- Pedro, pai de Clarice, em Dezembro desse ano, decide transferir-se para a cidade do Rio de Janeiro.

1935
- Viaja para o Rio, em companhia de sua irmã Tania e de seu pai, na terceira classe do vapor inglês "Highland Monarch". Vão morar numa casa alugada perto do Campo de São Cristóvão. Ainda nesse ano, mudam-se para uma casa na Tijuca, na rua Mariz e Barros. No colégio Sílvio Leite, na mesma rua de sua casa, cursa o quarta série ginasial. Lê romances adocicados, próprios para sua idade.

1936
- Termina o curso ginasial. Inicia-se na leitura de livros de autores nacionais e estrangeiros mais conhecidos, alugados em uma biblioteca de seu bairro. Conhece os trabalhos de Rachel de Queiroz, Machado de Assis, Eça de Queiroz, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Dostoiévski e Júlio Diniz.

1937
- Matricula-se no curso complementar (dois últimos anos do curso secundário) visando o ingresso na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro.

1938

- Transfere-se para o curso complementar do colégio Andrews, na praia de Botafogo. Às voltas com dificuldades financeiras, dá aulas particulares de português e matemática. A relação professor/aluno seria um dos temas preferidos e recorrentes em toda a sua obra — desde o primeiro romance:Perto do Coração Selvagem. Ao mesmo tempo, aprende datilografia e faz inglês na Cultura Inglesa.

1939
- Inicia seus estudos na Faculdade Nacional de Direito. Faz traduções de textos científicos para revistas em um laboratório onde trabalha como secretária. Trabalha, também como secretária, em um escritório de advocacia.

1940
- Seu conto, Triunfo, é publicado em 25 de maio no semanário "Pan", de Tasso da Silveira. Em outubro desse ano, é publicado na revista "Vamos Ler!", editada por Raymundo Magalhães Júnior, o conto Eu e Jimmy. Esses trabalhos não fazem parte de nenhuma de suas coletâneas. Após a morte de seu pai, no dia 26 de agosto, a escritora — talvez motivada por esse acontecimento — escreve diversos contos: A fuga, História interrompida e O delírio. Esses contos serão publicados postumamente em A bela e a fera, de 1979. Passa a morar com a irmã Tania, já casada, no bairro do Catete. Consegue um emprego de tradutora no temido Departamento de Imprensa e Propaganda - DIP, dirigido por Lourival Fontes. Como não havia vaga para esse trabalho, Clarice ganha o lugar de redatora e repórter da Agência Nacional. Inicia-se, ai, sua carreira de jornalista. No novo emprego, convive com Antonio Callado, Francisco de Assis Barbosa, José Condé e, também, com Lúcio Cardoso, por quem nutre durante tempos uma paixão não correspondida: o escritor era homossexual. Com seu primeiro salário, entra numa livraria e compra "Bliss - Felicidade", de Katherine Mansfield, com tradução de Erico Verissimo, pois sentiu afinidade com a escritora neozelandesa.

1941
- Em 19 de janeiro, publica a reportagem "Onde se ensinará a ser feliz", no jornal "Diário do Povo", de Campinas (SP), sobra a inauguração de um lar para meninas carentes realizada pela primeira-dama Darcy Vargas. Além de textos jornalísticos, continua a publicar textos literários. Cursando o terceiro ano de direito, colabora com a revista dos estudantes de sua faculdade, "A Época", com os artigos Observações sobre o fundamento do direito de punir e Deve a mulher trabalhar? Passa a freqüentar o bar "Recreio", na Cinelândia, centro do Rio de Janeiro, ponto de encontro de autores como Lúcio Cardoso, Vinicius de Moraes, Rachel de Queiroz, Otávio de Faria, e muitos mais.

1942
- Começa a namorar com Maury Gurgel Valente, seu colega de faculdade. Com 22 anos de idade, recebe seu primeiro registro profissional, como redatora do jornal "A Noite". Lê Drummond, Cecília Meireles, Fernando Pessoa e Manuel Bandeira. Realiza cursos de antropologia brasileira e psicologia, na Casa do Estudante do Brasil. Nesse ano, escreve seu primeiro romance, Perto do coração selvagem.
1943
- Casa-se com o colega de faculdade Maury Gurgel Valente e termina o curso de Direito. Seu marido, por concurso, ingressa na carreira diplomática.

1944
- Muda-se para Belém do Pará (PA), acompanhando seu marido. Fica por lá apenas seis meses. Seu livro recebe críticas favoráveis de Guilherme Figueiredo, Breno Accioly, Dinah Silveira de Queiroz, Lauro Escorel, Lúcio Cardoso, Antonio Cândido e Ledo Ivo, entre outros. Álvaro Lins publica resenha com reparos ao livro mesmo antes de sua publicação, baseado na leitura dos originais. Qualifica o livro de "experiência incompleta". Há os que pretendem não compreender o romance, os que procuram influências — de Virgínia Wolf e James Joyce, quando ela nem os tinha lido — e ainda os que invocam o temperamento feminino. Nas palavras de Lauro Escorel, as características do romance revelam uma "personalidade de romancista verdadeiramente excepcional, pelos seus recursos técnicos e pela força da sua natureza inteligente e sensível." O casal volta ao Rio e, em 13/07/44, muda-se para Nápoles, em plena Segunda Guerra Mundial, onde o marido da escritora vai trabalhar. Já na saída do Brasil, Clarice mostra-se dividida entre a obrigação de acompanhar o marido e ter de deixar a família e os amigos. Quando chega à Itália, depois de um mês de viagem, escreve: "Na verdade não sei escrever cartas sobre viagens, na verdade nem mesmo sei viajar." Termina seu segundo romance, O lustre. Recebe o prêmio Graça Aranha com Perto do coração selvagem, considerado o melhor romance de 1943. Conhece Rubem Braga, então correspondente de guerra do jornal "Diário Carioca".

1945
- Dá assistência a brasileiros feridos na guerra, trabalhando em hospital americano. O pintor italiano Giorgio De Chirico pinta-lhe um retrato. Viaja pela Europa e conhece o poeta Giuseppe Ungaretti. O lustre é publicado no Brasil pela Livraria Agir Editora.

1946
- Após o lançamento do livro, Clarice vem ao Brasil como correio diplomático do Ministério das Relações Exteriores, aqui ficando por quase três meses. Nessa época, apresentado por Rubem Braga, conhece Fernando Sabino que a introduz a Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e, posteriormente, a Hélio Pellegrino. De volta à Europa, vai morar com a família em Berna, Suíça, para onde seu marido havia sido designado como segundo-secretário. Sua correspondência com amigos brasileiros a mantinha a par das novidades, em especial as trocadas com Fernando Sabino. A troca de cartas com o escritor, quase que diariamente, duraria até janeiro de 1969. A convite, passam as festas de fim de ano com Bluma e Samuel Wainer, em Paris.

1947
- Em carta às irmãs, em janeiro de 47, de Paris, Clarice expõe seu estado de inadaptação:"Tenho visto pessoas demais, falado demais, dito mentiras, tenho sido muito gentil. Quem está se divertindo é uma mulher que eu detesto, uma mulher que não é a irmã de vocês. É qualquer uma." Em carta a Lúcio Cardoso, que havia lhe enviado seu livro "Anfiteatro", demonstra sua admiração pelas personagens femininas da obra.

1948
- Clarice fica grávida de seu primeiro filho. Para ela, a vida em Berna é de miséria existencial. A Cidade Sitiada, após três anos de trabalho, fica pronto. Terminado o último capítulo, dá à luz. Nasce então um complemento ao método de trabalho. Ela escreve com a máquina no colo, para cuidar do filho. Na crônica "Lembrança de uma fonte, de uma cidade", Clarice afirma que, em Berna, sua vida foi salva por causa do nascimento do filho Pedro, ocorrido em 10/09/1948, e por ter escrito um dos livros "menos gostados" (a editora Agir recusara a publicação).

1949
- Clarice volta ao Rio. Seu marido é removido para a Secretaria de Estado, no Rio de Janeiro. A cidade sitiada é publicado pela editora "A Noite". O livro não obtém grande repercussão entre o público e a crítica.

1950
- Escrevendo contos e convivendo com os amigos (Sabino, Otto, Lúcio e Paulo M. Campos), vê chegar a hora de partir: seguindo os passos de seu marido, retorna à Europa, onde mora por seis meses na cidade de Torquay, Inglaterra.

Sofre um aborto espontâneo em Londres. É atendida pelo vice-cônsul na capital inglesa, João Cabral de Melo Neto.

1951
- A escritora retorna ao Rio de Janeiro, em março. Publica uma seleta com seis contos na coleção "Cadernos de cultura", editada pelo Ministério da Educação e Saúde. Falece sua grande amiga Bluma, ex-esposa de Samuel Wainer.

1952- Cola grau na faculdade de direito, depois de muitos adiamentos. Volta a trabalhar em jornais, no período de maio a outubro, assinando a página "Entre Mulheres", no jornal "Comício", sob o pseudônimo de "Tereza Quadros". Atendeu a um pedido do amigo Rubem Braga, um dos fundadores do jornal. Nesse setembro, já grávida, embarca para a capital americana onde permanecerá por oito anos. Clarice inicia o esboço do romance A veia no pulso, que viria a ser A Maçã no Escuro, livro publicado em 1961.

1953
- Em 10 de fevereiro, nasce Paulo, seu segundo filho. Ela continua a escrever A Maçã no Escuro, em meio a conflitos domésticos e interiores. Mãe, Clarice Lispector divide seu tempo entre os filhos, A Maçã no Escuro, os contos deLaços de Família e a literatura infantil. Nos Estados Unidos, Clarice conhece o renomado escritor Erico Veríssimo e sua esposa Mafalda, dos quais torna-se grande amiga. O escritor gaúcho e sua esposa são escolhidos para padrinhos de Paulo. Não tem sucesso seu projeto de escrever uma crônica semanal para a revista "Manchete". Tem a agradável notícia de que seu romance Perto do coração selvagem seria traduzido para o francês.

1954

- É lançada a primeira edição francesa de Perto do coração selvagem, pela Editora Plon, com capa de Henri Matisse, após inúmeras reclamações da escritora sobre erros na tradução. Em julho, com os filhos, viaja para o Brasil, aqui ficando até setembro. De volta aos Estados Unidos, interrompe a elaboração de A maçã no escuro e se dedica, por cinco meses, a escrever seis contos encomendados por Simeão Leal.

1955
- Retorna a escrever o novo romance e contos. Sabino, que leu os seis contos feitos sob encomenda, os acho "obras de arte".

1956
- Termina de escrever A Maçã no Escuro (até então com o titulo de A veia no pulso). Érico Veríssimo e família retornam ao Brasil, não sem antes aceitarem serem os padrinhos de Pedro e Paulo. Entre os escritores, inicia-se uma vasta correspondência. A escritora e filhos vêm passar as férias no Brasil e Clariceaproveita para tentar a publicação de seu novo romance e os novos contos. Apesar de todo o empenho de Fernando Sabino e Rubem Braga, os livros não são editados. A escritora dá sinais de sua indisposição para com o tipo de vida que leva.

1957
- Rompe unilateralmente o contrato com Simeão Leal e autoriza Sabino e Braga a encaminharem seus contos — nessa altura em número de quinze — para serem publicados no "Suplemento Cultural" do jornal "O Estado de São Paulo". Seu casamento vive momentos de tensão.

1958
- Conhece e se torna amiga da pintora Maria Bonomi. É convidada a colaborar com a revista "Senhor", prevista para ser lançada no início do ano seguinte. Erico Verissimo escreve informando estar autorizado a editar seu romance e, também, seus contos pela Editora Globo, de Porto Alegre. 1.000 exemplares — dos mais de 1.700 remanescentes — de "Près du coeur sauvage" são incinerados, por falta de espaço de armazenamento. O casamento de Claricedá sinais de seu final.

1959
- Separa-se do marido e, em julho, regressa ao Brasil com seus filhos. Seu livro continua inédito. A escritora resolve comprar o apartamento onde está residindo, no bairro do Leme, e, para isso, busca aumentar seus ganhos. Sob o pseudônimo de "Helen Palmer", inicia, em agosto, uma coluna no jornal "Correio da Manhã", intitulada "Correio feminino — Feira de utilidades".

1960
- Publica, finalmente, Laços de Família, seu primeiro livro de contos, pela editora Francisco Alves. Começa a assinar a coluna "Só para Mulheres", como "ghost-writer" da atriz Ilka Soares, no "Diário da Noite", a convite do jornalista Alberto Dines. Assina, com a Francisco Alves, novo contrato para a publicação de A maçã no escuro. Torna-se amiga da escritora Nélida Piñon.

1961
- Publica o romance A maçã no escuro. Recebe o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, por Laços de família.

1962
- Passa a assinar a coluna "Children's Corner", da seção "Sr. & Cia.", onde publica contos e crônicas. Visita, com os filhos, seu ex-marido que se encontra na Polônia. Recebe o prêmio Carmen Dolores Barbosa (oferecido pela senhora paulistana de mesmo nome), por A maçã no escuro, considerado o melhor livro do ano.

1963
- A convite, profere no XI Congresso Bienal do Instituto Internacional de Literatura Ibero-Americana, realizado em Austin - Texas, conferência sobre o tema "Literatura de vanguarda no Brasil. Conhece Gregory Rabassa, mais tarde tradutor para o inglês de A maçã no escuro. A paixão segundo G. H. é escrito em poucos meses, sendo entregue à Editora do Autor, de Sabino e Braga, para publicação. Compra um apartamento em construção no bairro do Leme.

1964
- Publica o livro de contos A legião estrangeira e o romance A Paixão Segundo G. H., ambos pela Editora do Autor. Em dezembro, o juiz profere a sentença que poria fim ao processo de separação de Clarice e Maury.

1965
- Em maio, muda-se para o apartamento comprados em 1963. Sua obra passa a ser vista com outros olhos — pela crítica e pelo público leitor — após A paixão segundo G. H. Resultado de uma seleta de trechos de seus livros, adaptados por Fauzi Arap, é encenada no Teatro Maison de France o espetáculo Perto do coração selvagem, com José Wilker, Glauce Rocha e outros. Dedica-se à educação dos filhos e com a saúde de Pedro, que apresenta um quadro de esquizofrenia, exigindo cuidados especiais. Apesar de traduzida para diversos idiomas e da republicação de diversos livros, a situação financeira de Clarice é muito difícil.

1966
- Na madrugada de 14 de setembro a escritora dorme com um cigarro aceso , provocando um incêndio. Seu quarto ficou totalmente destruído. Com inúmeras queimaduras pelo corpo, passou três dias sob o risco de morte — e dois meses hospitalizada. Quase tem sua mão direita — a mais afetada — amputada pelos médicos. O acidente mudaria em definitivo a vida de Clarice.

1967
- As inúmeras e profundas cicatrizes fazem com que a escritora caia em depressão, apesar de todo o apoio recebido de seus amigos. Não foi só um ano de acontecimentos ruins. Começa a publicar em agosto — a convite de Dines — crônicas no "Jornal do Brasil", trabalho que mantém por seis anos. Lança o livro infantil O mistério do coelho pensante, pela José Álvaro Editor. Em dezembro, passa a integrar o Conselho Consultivo do Instituto Nacional do Livro.

1968
- Em maio, o livro O mistério do coelho pensante é agraciado com a "Ordem do Calunga", concedido pela Campanha Nacional da Criança. Entrevista personalidades para a revista "Manchete" na seção "Diálogos possíveis com Clarice Lispector". Participa da manifestação contra a ditadura militar, em junho, chamada "Passeata dos 100 mil". Morrem seus amigos e escritores Lúcio Cardoso e Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta). É nomeada assistente de administração do Estado. Profere palestras na Universidade Federal de Minas Gerais e na Livraria do Estudante, em Belo Horizonte. Publica A mulher que matou os peixes, outro livro infantil, ilustrado por Carlos Scliar.

1969
- Publica seu "hino ao amor": Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, pela Editora Sabiá. O romance ganha o prêmio "Golfinho de Ouro", do Museu da Imagem e do Som. Viaja à Bahia onde entrevista para a "Manchete" o escritor Jorge Amado e os artistas Mário Cravo e Genaro. Em 14/08 é aposentada pelo INPS - Instituto Nacional de Previdência Social. Seu filho Paulo, mora nos Estados Unidos desde janeiro, num programa de intercâmbio cultural. Seu irmão Pedro, em tratamento psiquiátrico, esteve internado por um mês, em junho.

1970
- Começa a escrever um novo romance, com o título provisório de Atrás do pensamento: monólogo com a vida. Mais adiante, é chamado Objeto gritante.Foi lançado com o título definitivo de Água viva. Conhece Olga Borelli, de que se tornaria grande amiga.

1971
- Publica a coletânea de contos Felicidade clandestina, volume que inclui O ovo e a galinha, escrito sob o impacto da morte do bandido Mineirinho, assassinado pela polícia com treze tiros, no Rio de Janeiro. Há, também, um conjunto de escritos em que rememora a infância em Recife. Encarrega o professor Alexandre Severino da tradução, para o inglês, de Atrás do pensamento: monólogo com a vida. Dez de seus contos já publicados constam de "Elenco de cronistas modernos", lançado pela Editora Sabiá.

1972
- Retoma a revisão de Atrás do pensamento, com o qual não estava satisfeita. Faz inúmeras alterações no texto e passa a chamá-lo Objeto gritante. Repensando o romance, procura distrair-se. Durante um mês posa para o pintor Carlos Scliar, em Cabo Frio (RJ).

1973
- Publica o romance Água viva, após três anos de elaboração, pela Editora Artenova, que lançaria também, nesse ano, A imitação da rosa, quinze contos já publicados anteriormente em outras coletâneas. Alberto Dines, em carta à escritora, diz sobre Água viva: "[...] É menos um livro-carta e, muito mais, um livro música. Acho que você escreveu uma sinfonia". Viaja à Europa com a amiga Olga Borelli. Clarice deixa de colaborar com o "Jornal do Brasil", face à demissão de Alberto Dines, no mês de dezembro.

1974
- Para manter seu nível de renda, aumenta sua atividade como tradutora. Verte, entre outros, "O retrato de Dorian Gray", de Oscar Wilde, adaptado para o público juvenil, pela Ediouro. Publica, pela José Olympio Editora, outro livro infantil, A vida íntima de Laura e dois livros de contos, pela Artenova: A via crucis do corpo e Onde estivestes de noite. Uma curiosidade: a primeira edição de Onde estivestes de noite foi recolhida porque foi colocado, erroneamente, um ponto de interrogação no título. Seu cão, Ulisses, lhe morde o rosto, fazendo com que se submeta a cirurgia plástica reparadora reparadora realizada por seu amigo Dr. Ivo Pitanguy. Lê, em Brasília (DF), a convite da Fundação Cultural do Distrito Federal, a conferência "Literatura de vanguarda no Brasil", que já apresentara no Texas. Participa, em Cali — Colômbia, do IV Congresso da Nova Narrativa Hispano-americana. Seu filho, Paulo, vai morar sozinho, em um apartamento próximo ao da escritora. Pedro vai morar com o pai, em Montevidéu — Uruguai.

1975
- Tendo como companheira de viagem a amiga Olga Borelli, participa do I Congresso Mundial de Bruxaria, em Bogotá, Colômbia. No dia de sua apresentação sente-se indisposta e pede a alguém que leia o conto O ovo e a galinha, não apresentando a fala sobre a magia que havia preparado para a introdução da leitura. Muito embora minimizada, essa participação tem muito a ver com as palavras ditas por Otto Lara Resende, conhecido escritor, em um bate-papo com José Castello: "Você deve tomar cuidado com Clarice. Não se trata de literatura, mas de bruxaria." Otto se baseava em estudos feitos por Claire Varin, professora de literatura canadense que escreveu dois livros sobre a biografada. Segundo ela, só é possível ler Clarice tomando seu lugar —sendo Clarice. "Não há outro caminho", ela garante. Para corroborar sua tese, Claire cita um trecho da crônica A descoberta do mundo, onde a escritora diz: "O personagem leitor é um personagem curioso, estranho. Ao mesmo tempo que inteiramente individual e com reações próprias, é tão terrivelmente ligado ao escritor que na verdade ele, o leitor, é o escritor." Traduz romances, como "Luzes acesas", de Bella Chagall, "A rendeira", de Pascal Lainé, e livros policiais de Agatha Christie. Ao longo da década, faz adaptações de obras de Julio Verne, Edgar Allan Poe, Walter Scott e Jack London e Ibsen. Lança Visão do esplendor, com trabalhos já publicados na coluna "Children's Corner", da revista "Senhor" e também no "Jornal do Brasil". Publica De corpo inteiro, com algumas entrevistas que fizera anteriormente para revistas cariocas. É muito elogiada quando visita Belo Horizonte, fato que a deixa contrariada. Passa a dedicar-se à pintura. Morre, dia 28 de novembro, seu grande amigo e compadre Erico Verissimo. Reúne trabalhos de Andréa Azulay num volume artesanal ilustrado por Sérgio Mata, intitulado "Meus primeiros contos". Andréa tinha, então, dez anos de idade.

1976
- Seu filho Paulo casa-se com Ilana Kauffmann. Participa, em Buenos Aires, Argentina, da Segunda Exposición — Feria Internacional del Autor al Lector, onde recebe muitas homenagens. É agraciada, em abril, com o prêmio concedido pela Fundação Cultural do Distrito Federal, pelo conjunto de sua obra. Grava depoimento no Museu da Imagem e do Som, no Rio de Janeiro, em outubro, conduzido por Affonso Romano de Sant'Anna, Marina Colasanti e por João Salgueiro, diretor do MIS. Em maio, corre o boato de que a escritora não mais receberia jornalistas. José Castello, biógrafo e escritor, nessa época trabalhando no jornal "O Globo", mesmo assim telefona e consegue marcar um encontro. Após muitas idas e vindas é recebido. Trava então o seguinte diálogo com Clarice:

J.C. "— Por que você escreve?

C.L. "— Vou lhe responder com outra pergunta: — Por que você bebe água?"

J.C. "— Por que bebo água? Porque tenho sede."

C.L. "— Quer dizer que você bebe água para não morrer. Pois eu também: escrevo para me manter viva."

Enquanto escreve A hora da estrela com a a ajuda da amiga Olga, toma notas para o novo romance, Um sopro de vida. Revê Recife e visita parentes. Em dezembro, "Fatos e Fotos Gente", revista do grupo "Manchete", publica entrevista feita com a artista Elke Maravilha, a primeira de uma série que se estenderia até outubro de 1977.

1977
- A revista "Fatos e Fotos Gente" publica, em janeiro, entrevista feita pela escritora com Mário Soares, primeiro-ministro de Portugal. O jornal "Última Hora" passa a publicar, a partir de fevereiro, semanalmente, as suas crônicas. Ainda nesse mês, é entrevistada pelo jornalista Júlio Lerner para o programa "Panorama Especial", TV Cultura de São Paulo, com o compromisso de só ser transmitida após a sua morte. Escreve um livro para crianças, que seria publicado em 1978, sob o título Quase de verdade. Escreve, ainda, doze histórias infantis para o calendário de 1978 da fábrica de brinquedos "Estrela", intitulado Como nasceram as estrelas. Vai à França e retorna inesperadamente. Publica A hora da estrela, pela José Olympio, com introdução — "O grito do silêncio" — de Eduardo Portella. Esse livro seria adaptado para o cinema, em 1985, por Suzana Amaral. A editora Ática lança nova edição de A legião estrangeira, com prefácio de Affonso Romano de Sant'Anna. Clarice morre, no Rio, no dia 9 de dezembro de 1977, um dia antes do seu 57° aniversário vitimada por uma súbita obstrução intestinal, de origem desconhecida que, depois, veio-se a saber, ter sido motivada por um adenocarcinoma de ovário irreversível. O enterro aconteceu no Cemitério Comunal Israelita, no bairro do Caju, no dia 11. Vai ao ar, pela TV Cultura, no dia 28/12, a entrevista gravada em fevereiro desse ano.

1978
- Três livros póstumos são publicados: o romance Um sopro de vida — Pulsações, pela Nova Fronteira, a partir de fragmentos em parte reunidos por Olga Borelli; o de crônicas Para não esquecer, e o infantil, Quase de verdade,em volume autônomo, pela Ática. Para não esquecer é composto de crônicas que haviam sido publicadas na segunda parte do livro A legião estrangeira, em 1964, que compunham a seção "Fundo de Gaveta" do citado livro. A hora da estrela é agraciada com o prêmio Jabuti de "Melhor Romance". A paixão sendo G. H. é publicada na França, com tradução de Claude Farny.

1979
- É publicado A bela e a fera, pela Nova Fronteira, contendo contos publicados esparsamente em jornais e revistas. Estréia, no teatro Ruth Escobar, em São Paulo, Um sopro de vida, baseado em livro de mesmo nome, com adaptação de Marilena Ansaldi e direção de José Possi Neto.

1981
- "Clarice Lispector — Esboço para um retrato", de Olga Borelli, é lançado pela Nova Fronteira.

1984

- Reunindo a quase totalidade de crônicas publicadas no Jornal do Brasil, no período de 1967 a 1973, é lançado "A descoberta do mundo", organização de Paulo Gurgel Valente, filho da autora. A Éditions des Femmes, da França, lança, em sua coleção "La Bibliotèque des voix", fita cassete com trechos deLa passion selon G. H., lidos pela atríz Anouk Aimée.
1985
- A hora da estrela recebe dois prêmios na 36ª edição do Festival de Berlim: da Confederação Internacional de Cineclubes — Cicae, e da Organização Católica Internacional do Cinema e do Audiovisual — Ocic. O longa-metragem de mesmo nome, dirigido por Suzana Amaral, com roteiro de Alfredo Oros também é premiado: Marcélia Cartaxo recebe o Urso de Prata de "Melhor Atriz".
Outros acontecimentos
Os 10 anos da morte da escritora são lembrados com diversas homenagens em sua memória. É aberto ao público o conjunto de documentos que viria a constituir o Arquivo Clarice Lispector do Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa - FCRB, no Rio de Janeiro, constituído de documentos doados por Paulo Gurgel Valente.

Em 1990, a Francisco Alves Editora inicia a reedição da obra da escritora. A paixão segundo G. H. é encenada na capital francesa, no teatro Gérard Philippe, em montagem de Alain Neddam. Diane E. Marting, em 1993, publica "Clarice Lispector. A Bio-Bibliography", pela Westport: Greenwood Press, nos Estados Unidos. Em 1996, é lançada a antologia "Os melhores contos de Clarice Lispector", pela editora Global.

Estréia no Rio de Janeiro "Clarice — Coração selvagem", adaptado e dirigido por Maria Lúcia Lima, com Aracy Balabanian, em 1998.

No ano seguinte, "Que mistérios tem Clarice", adaptado por Luiz Arthur Nunes e Mário Piragibe estréia no teatro N. E. X. T.

Fernando Sabino, em 2001, organiza e publica, pela Record, "Cartas perto do coração", contendo correspondência que manteve com a escritora de 1946 a 1969.

A editora Rocco lança, em 2002, "Correspondências — Clarice Lispector", antologia de cartas de e para a escritora, seleção de Teresa Montero.

No aniversário de Clarice, 10/12/2002, a Embaixada do Brasil na Ucrânia e a Prefeitura de Tchetchelnik se associam em homenagem à memória da escritora, inaugurando uma placa com dados biográficos gravados em russo e em português, que é afixada na entrada da sede da administração municipal.

Em 2004, os manuscritos de A hora da estrela e parte dos livros que pertenciam à biblioteca pessoal de Clarice Lispector são confiadas por Paulo Gurgel Valente à guarda do Instituto Moreira Salles, que lança, em dezembro, edição especial dos "Cadernos de Literatura Brasileira", dedicada à vida e à obra da autora.
Em artigo publicado no jornal "The New York Times", no dia 11/03/2005, a escritora foi descrita como o equivalente de Kafka na literatura latino-americana. A afirmação foi feita por Gregory Rabassa, tradutor para o inglês de Jorge Amado, Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa e de Clarice. No dia 13/01, foi discutido o viés judaico na obra da autora no Centro de História Judaica em Nova York.
O Consulado-Geral do Brasil em Córdoba - Argentina, participou, em 2007, de homenagem, dos alunos do 6º ano do nível médio, à escritora Clarice Lispector. O fato mereceu destaque na página de divulgação de eventos culturais do Ministério das Relações Exteriores. Naquela cidade encontram-se 47 escolas que ensinam a Língua Portuguesa e aspectos da cultura e literatura brasileira. O Consulado-Geral também conta com uma pequena biblioteca, que atende ao público interessado nesses assuntos, embora não haja ali nenhuma obra da citada escritora. No entanto, têm sido publicadas, nos últimos tempos, notas sobre a vida e a obra de Clarice Lispector, na imprensa local.









Obras da autora:

Romances:

Perto do Coração Selvagem (1943);
O Lustre (1946)
A Cidade Sitiada (1949)
A Maçã no Escuro (1961)
A Paixão segundo G.H. (1964)
Uma Aprendizagem ou Livro dos Prazeres (1969)
Água Viva (1973)
Um Sopro de Vida - Pulsações (1978)

Novela:A hora da estrela (1977)

Contos:
Alguns contos (1952)
Laços de família (1960)
A legião estrangeira (1964)
Felicidade clandestina (1971)
A imitação da rosa (1973)
A via crucis do corpo (1974)
Onde estivestes de noite? (1974)
A bela e a fera (1979)

Correspondência:

Cartas perto do coração (2001) - Organização de Fernando Sabino
Correspondência - Clarice Lispector (2002) - Organização de Teresa Cristina M. Ferreira

Crônicas:Visão do esplendor - Impressões leves (1975)
Para não esquecer (1978) - contos inicialmente publicados em Laços de família.
A descoberta do mundo (1984)
Entrevistas:De corpo inteiro (1975)

Literatura infantil:O mistério do coelho pensante (1967) - Escrito em inglês e traduzido por Clarice

A mulher que matou os peixes (1968)
A vida íntima de Laura (1974)
Quase de verdade (1978)
Como nasceram as estrelas (1987)
Antologias:Seleta de Clarice Lispector (1975) - Organização de Renato Cordeiro Gomes
Clarice Lispector (1981) - Organização de Benjamin Abdala Jr. e Samira Y. Campedelli
O primeiro beijo & outros contos, de Clarice Lispector (1991)
Os melhores contos de Clarice Lispector (2001) - Organização de Walnice N. Galvão
Aprendendo a viver (2004)

Livros publicados no exterior
Clarice Lispector tem seus livros publicados em diversos países do mundo: Alemanha, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos da América, França, Israel, Holanda, Inglaterra, Itália, Noruega, Polônia, Rússia, Suécia, República Tcheca e Turquia. Citamos alguns, a título de exemplo:
Die Passion nach G.H. (A paixão segundo G. H.) (1995), tradução de Pieer Sibast

La manzana en la obscuridad (A maçã no escuro) (1974), tradução de Juan García Gayo
L'heure de l'étoile (A hora da estrela) (1989), tradução de Marguerite Wünscher
Osher samuy (Felicidade clandestina) (2001), tradução de Mirian Tivon
The Foreign Legion (A legião estrangeira) (1986), tradução de Giovanni Pontiero
The Stream of Life (Água viva) (1989), tradução de Elizabeth Lowe e outros
Dove siete stati di notte (Onde estivestes de noite) (1994), tradução de Adelina Aletti
Zivá voda (Água viva) (2000), tradução de Pavla Lidmilová

Filmografia:

A hora da estrela (Brasil, 1985, 96 min).
Direção: Suzana Amaral.
Elenco: Marcélia Cartaxo, José Dumont e Tamara Taxman.

O corpo (Brasil, 1991, 80 min).
Direção: José Antônio Garcia
Elenco: Antônio Fagundes, Marieta Severo, Cláudia Jimenez, Carla Camurati, Sérgio Mamberti e outros.


Chamada final (Brasil/Alemanha/China e EUA, 1994)

Direção: Ana Maria Magalhães
Elenco: Claudia Ohana, Guilherme Leme e outros.

Ruído de passos (Brasil, 1995 - curta-metragem)
Direção: Denise Tavares Gonçalves.


Clandestina felicidade (Brasil, 1998 - curta metragem que trata da infância da autora)
Direção: Beto Normal e Marcelo Gomes
Elenco: Luisa Phebo.

Macabéia (Brasil, 2000 -curta-metragem)
Direção de Erly VieiraJr., Lizandro Nunes e Virgínia Jorge.

Aeroporto em o embarque (Brasil, 2002 - curta-metragem)
Direção: Nicole Algranti
Elenco: Marcélia Cartaxo.

O ovo (Brasil, 2003 - curta-metragem)
Direção: Nicole Algranti
Roteiro: Luiz Carlos Lacerda.

Televisão:
Feliz Aniversário, Rede Globo, 1978
Especial Clarice Lispector - TV Cultura, 1999


A hora da estrela, Rede Globo, 2003
Teatro:Perto do coração selvagem (1965)
Direção: Fauzi Arap
Elenco: Glauce Rocha, José Wilker e outros


Um sopro de vida (1979)
Direção: José Possi Neto
Elelnco: Marilena Ansaldi.

A hora da estrela (1984)
Direção: Naum Alves de Souza
Elenco: Maria Bethânia.

A paixão segundo G. H. (1989)
Direção: Cibele Forjaz
Elenco: Marilena Ansaldi.

A pecadora queimada e os anjos harmoniosos (1992)
Direção: José Antônio Garcia
Elenco: Sérgio Mambertti e outros.

A mulher que matou os peixes (1994)
Direção: Lúcia Coelho
Elenco: Zezé Polessa.

A mulher que matou os peixes (1998)
Adaptação de Adriane Azenha.

A hora da estrela (1998)
Direção: Roberto Vignatti
Elenco: Alexandra Tavares.

Que mistérios tem Clarice? (1998)
Direção: Luiz Arthur Nunes
Elenco: Rita Elmôr (monólogo)

Clarice - Coração selvagem (1998)
Direção: Maria Lucya de Lima
Elenco: Aracy Balabanian.

Quase de verdade (2001)

Direção: Ulisses Cohn
Elenco: Cia. Delas de Teatro

A hora da estrela (2001)
Direção: Marcus Vinicius Faustini
Elenco: Marcélia Cartaxo e outros.

A descoberta do mundo (2001)
Direção: Marco Antonio Rodrigues
Elenco: Cia. Delas de Teatro

A hora da estrela (2002)
Direção: Naum Alves de Souza
Elenco: Célia Borbes, Ester Lacava e Edgar Jordão.

Leituras (áudio)Clarice Lispector - Áudio (1998)
Seleção de contos feita por Paulinho Lima. Interpretação de Aracy Balabanian; Luz da Cidade, coleção Poesia Falada.


Doze lendas brasileiras - Clarice Lispector (V. 1) (2000)
Idealização e produção de Paulinho Lima; Luz da Cidade.

Clarice Lispector - A mulher que matou os peixes (V. 4) (2000)
Idealização e produção de Paulinho Lima; Luz da Cidade.

A descoberta do mundo (2002)
Seleção de crônicas feita por Teresa Montero, interpretação de Aracy Balabanian; Luz da Cidade, Coleção Os cronistas.

La passion selon G. H. (sd)
Gravação de trechos do romance A paixão segundo G. H. pela atriz Anouk Aimée; Des Femmes, Paris.
Liens de famille (sd)

Gravação de contos do livro Laços de família por Chiara Mastroianni; Des Femmes, Paris.




Dados obtidos em livros da autora, sites da Internet, nos Cadernos de Literatura Brasileira - Instituto Moreira Salles, no "Inventário das Sombras" de José Castello e fornecidos por João Pires, amigo do Releituras.

Resumo do livro:Perto do Coração Selvagem.


                                                                                                  Obra de 1943



Perto do Coração Selvagem, Joana expressa, por fluxos de consciência, sua vida interior, contrapondo suas experiências de menina às de adulta, mergulhando ora no passado, ora no presente, segundo o fio condutor da memória.
A infância viveu ao lado do pai, a quem confiou, por meio de brincadeiras, suas incertezas infantis. Era sonhadora, contemplativa e, inconscientemente, provocava os adultos com suas questões e opiniões. Escrevia versos, tinha medo de dormir sozinha e sentia muita pena das galinhas. Para ela, estas nem sabiam que iam morrer. A mãe, Elza, morreu, quando ela ainda era muito pequena; Conhecia-a pelas descrições do pai. O tempo junto a este também foi curto, morreu quando ela ainda era menina.
Órfã, Joana vai morar com os tios. Logo nos primeiros dias de convívio, a severidade na casa se revela hipócrita, despertando-lhe uma visão repugnante daquilo que a esperaria no futuro; Eles fingem condoer-se da sua infelicidade. A relação entre sobrinha e tia é tensa, mas aceitável; a presença da menina a sufocava. Um dia ao acompanhar a tia às compras, como num teste para si mesma e causar espanto aos outros, Joana roubou um livro, fazendo com que a realidade de sua relação com aquela família viesse à tona. Desabonando esse tipo de conduta, a tia pediu ao marido que encaminhasse a menina a um colégio interno, onde as diferenças, entre Joana e o mundo que a cercava, iriam se acentuar.

Essa inadaptabilidade aos lugares, a constante vocação para o mal e o desconhecimento de si mesma faziam parte do processo de descobrir-se, encontrar a razão de ser de sua existência. Nesse processo, surge um professor casado, que lhe dá ouvidos, aconselhando-a, na medida do possível. Ele torna-se seu amor adolescente, e Joana, sentindo uma espécie de inveja da esposa, sofre as agruras dessa primeira paixão.
Desligada do internato, Joana casou-se com Otávio, que divagava tão intensamente quanto ela. Embora casado, mantinha um relacionamento amoroso com, Lídia, sua ex-noiva, a quem engravidou. Isso aparentemente seria a causa da separação entre Otávio e Joana, além da diferença de temperamentos, expectativa de vida e compreensão de mundo do casal. Joana, que sabia tudo sobre o relacionamento dos dois, abordou a situação naturalmente, sem escândalo ou drama passional. No entanto, no seu interior, esse fato lhe suscitava muitas reflexões, sendo uma delas o projeto de ter um filho com o marido, antes de devolvê-lo à rival. Isso não se realizou e Otávio partiu, deixando uma suposta promessa de volta no ar.
Depois da separação, um homem desconhecido passou a seguir Joana, durante algum tempo. Um certo dia, ela se viu na casa desse estranho e, sem sequer saber-lhe o nome, desejando conhecê-lo por outras fontes e por outros caminhos, com ele teve alguns encontros. O desconhecido que, para ela, era mais um salto para sua auto-investigação, um dia, acabou partindo. Ela, também, embarcou sozinha para uma viagem não muito bem definida, dando a entender que, naquele momento, teria condições de se resgatar.

Resumo do livro: O Lustre. 


                                                                                             Obra de 1946




O lustre, relata um romance e eu devo afirmar que, é muito difícil falar sobre esse livro por que, ele é um livro que a gente pode mais absorver que falar, então vou deixar um resumo dele aqui abaixo.
"O Lustre conta a história de Virgínia, desde sua infância e que parece marcada sob o aspecto do mal. A obra é permeada pela interiorização dos personagens, pela percepção de sentimentos ruins, ódios, amores, culpas, euforias, tristezas, medo, angústia, sentimentos íntimos que falam pela própria alma.
As lembranças da infância com o irmão marcam o pensamento de Virgínia e sua experimentação com perversidades, onde ela e o irmão são agentes ou vítimas um do outro, em uma relação incestuosa. Nas brincadeiras de infância entre os dois irmãos, o menino exercita sua maldade e Virgínia é o instrumento de obtenção daquele prazer.
Tenta voltar a viver no casarão, na tentativa de, também, voltar ao passado, apegando-se aos poucos bens da casa, que restaram da falência, mas a solidão parece ser ainda maior: os quartos vazios, a enorme sala de jantar, os tapetes, o lustre, tudo isso aumenta sua inquietação. Sofre por isso, por ver a infância perdida, o passado morto e tudo, até mesmo a relação com o irmão e a tentativa de ter um amante, terem se frustrado.
Olha perdidas vezes para a luz do antigo lustre, como se esperasse por algo, quem sabe até mesmo a própria morte.
E, assim, numa imensa solidão, Virgínia morre atropelada por um carro e é reconhecida apenas pelo chapéu marrom"

Resumo do livro: Cidade Sitiada





Obra de 1949.




Lucrécia Neves era uma moradora de São Geraldo, um subúrbio que aos poucos se transformou acompanhando a modernização ao redor. Lá havia uma grande quantidade de cavalos que disputavam a rua com os moradores, viam-se também galinhas, e o cheiro dos poucos motores se misturava ao aroma do campo.
Lucrécia morava com a mãe, Ana. Era extremamente patriota em relação ao subúrbio, sentia-se dona da cidade. Era magra e alta, o rosto era pálido e, em alguns momentos, apresentava manchas negras, talvez pelo efeito da luz. Ela era uma mulher fria e também ingênua.
Sua mãe era viúva, viviam as duas juntas em uma casa cheia de bibelôs, a comunicação entre mãe e filha não era das melhores, na verdade, juntas encenavam uma “farsa”. Não eram pobres, o que elas tinham permitia uma vida adequada sem luxos ou extravagâncias.
Lucrécia namorava Felipe, que fazia parte da cavalaria; ela amava homens do exército, aqueles que usavam fardas e carregavam armas. Felipe se enquadrava bem a esse perfil. Ao mesmo tempo saía com Perseu, um jovem bonito, talvez o homem mais bonito que ela já tivera; Perseu gostava dela, achava-a maravilhosa; no entanto, para ela, ele era um belo e educado homem, mas também um fraco, já que ela se mantinha à frente do relacionamento deles.
Lucrécia e Felipe romperam no momento em que ela lhe negou um beijo e ele ofendeu o subúrbio dela; ela o criticara como forasteiro e assim acabara o romance. Felipe tinha farda, porém não pertencia a São Geraldo. Perseu e ela também acabaram se separando, mesmo depois da tentativa dele de mudar o jeito de ser, ao que Lucrécia reagira negativamente, fazendo-o voltar a ser o Perseu maravilhado pela pessoa dela.
Nessas circunstâncias, existia Mateus, um homem rico, morador da metrópole, mas que vinha a São Geraldo e fazia visitas à Ana com o verdadeiro intuito de conseguir Lucrécia. E ela, como já tinha a idade para se casar, casara-se com ele e foram para a metrópole.
Na metrópole iam às festas e teatros. Lucrécia ao mesmo tempo se espantava e admirava o ritmo acelerado da metrópole com toda a sua modernidade. Moravam em um hotel; ela não fizera amizades e também não compreendia o marido, porém o amava. Mateus era rico, saía cedo para trabalhar e era bondoso. Lucrécia só viera a compreender o jeito de ser do marido quando ele morrera. Foi aí que ela descobrira a bondade do marido e como a rotina do casamento o alegrava.
Lucrécia, cansada da metrópole, decidira voltar a São Geraldo. Mateus aceitara instantaneamente a ideia.
Ana havia se mudado para uma fazenda de um parente ou conhecido, assim eles voltaram a morar na antiga casa de Lucrécia. No subúrbio, os cavalos já davam espaço para os bondes. As fábricas surgiam e um viaduto fôra construído varrendo os cavalos, galinhas e o cheiro de campo para longe.
Como Mateus viajava muito, em uma de suas viagens deixara Lucrécia em uma ilha para que ela engordasse e não ficasse só em São Geraldo. Nessa ilha vivia Dr. Lucas, já conhecido de Lucrécia. A mulher dele vivia em um manicômio e foi assim que ela se apaixonara pelo doutor. Eles passeavam juntos e, às vezes, os braços se tocavam e ela se apaixonava cada vez mais. Ele achava impossível o romance e depois questionava se Lucrécia reapareceria.
Na noite seguinte, Lucrécia estava lá declarando que por ser impossível esse amor, não iria continuar. Os dois viveram um romance. Mais tarde Lucrécia voltara à São Geraldo e Mateus morrera. Lucrécia sofrera, arrependera-se de como era a vida com o marido, sem nunca ter compreendido o quão bom era ele.
Nesse tempo, Perseu se tornara um homem, encontrara uma mulher no trem com quem se sentou para beber depois da viagem e mudara-se para outra cidade para exercer a medicina.
Viúva, Lucrécia morava só no subúrbio que não era mais o seu subúrbio. Os cavalos foram banidos e a nova geração, domada pela modernidade, tomava conta das ruas.
E foi assim que Lucrécia recebera uma carta entregue por sua mãe, de um homem de “bom coração” que se interessara por ela (tinha visto uma foto). Lucrécia se encantara com a novidade e assim fôra embora de São Geraldo.


Resumo do livro: Maçã no Escuro.




Obra de 1961.




(…) A amizade é muito bonita mesmo. Mas o amor é mais. Eu não podia ter amizade por um homem que eu tinha amado. (p. 206)



Em “A maçã no escuro”, Clarice Lispector conta a história de Martim, um homem que foge na noite, se refugia num hotel e depois numa fazenda, pois pensa que havia matado a esposa. Completamente corporal, sentimos toda a agonia física de Martim durante essa fuga. O corpo é o artificie da escritura de Clarice durante todo o romance. O ambiente é o das sensações, do pensamento, nós vamos construindo o nosso entendimento aos poucos. Um livro denso, como costuma ser Clarice com a sua literatura psicológica. Nota- se claramente que esse livro foi o precursor de “A paixão segundo G.H.” (1965), a protagonista (aquela que comeu uma barata) e a forma de narrar é muito parecida com “A maçã no escuro”, inclusive usando expressões iguais ou similares, como as “coisas sem nome”, coisas que os narradores de ambos livros não conseguem nomear, sensações que parecem não ter nome. Martim está no coração do Brasil e foge na escuridão, anda de olhos fechados há duas semanas, desde que sua casa foi incendiada. Clarice escreveu esse livro quando morava no exterior entre Torquay (Inglaterra) e Washington (EUA).
Este é o quarto romance de Clarice Lispector, “A maçã no escuro” (1961) é dividido em três capítulos: “Como se faz um homem”, “Nascimento de um herói” e “A maçã no escuro.
No primeiro capitulo, Martim aboliu a palavra “culpa” do seu entendimento e a substituiu pela palavra “ato”. Não se arrependeu de ter cometido um crime, que ele substituiu pela expressão “o grande pulo”, considerou uma vitória. Agora o único inimigo que tinha eram os outros e não a si próprio:
Sim. naquele instante de espantada vitória o homem de repente descobrira a potência de um gesto. O bom do ato é que ele nos ultrapassa. Em um minuto Martim fora transfigurado pelo seu próprio ato. Porque depois de duas semanas de silêncio, eis que ele muito naturalmente passara a chamar seu crime de ‘ato’. (p. 36)
Mas arrependeu- se em seguida de tal pensamento. A impressão que dá é que Martim é uma espécie de psicopata, tenta justificar e perdoar o seu ato para poder continuar vivendo. Mas não é isso, afinal os psicopatas são desprovidos de qualquer moralidade, são frios e não têm empatia pelo outro. Alguém que comete um ato muito ruim, geralmente sente o peso da culpa, como se estivesse sujo, indigno, mas com Martim isso não acontece, é bem ao contrário, o mal funciona como uma espécie de purificação. Clarice entrou no pensamento de alguém que se achava assassino, o narrador- onisciente nos conta tudo:
Desta hora em diante teria a oportunidade de viver sem fazer o mal porque já o fizera: ele era agora um inocente. (p. 42)
Morto de fome e de sede, Martim encontra uma fazenda pela rota de sua fuga e a dona Vitória acaba por contratá- lo por casa e comida. Fazenda não, um sítio decadente. As sensações do primeiro encontro gera um combate de percepções entre os envolvidos, que demanda uma série de conhecimentos prévios sobre a nossa percepção do outro. Vitória e a hermética prima Ermelinda moravam juntas, essa veio de visita e ficou:
‘O que é que faz com que eu, não fazendo nenhum ato de maldade, seja a ruim? e Ermelinda, não fazendo um ato de bondade, seja boa?’ O mistério das coisas serem como nós sabemos que elas são (…) (p.72)
Ermelinda passou a infância toda doente e virou uma adulta irresponsável, como se todos tivessem que estar à sua disposição, como se o passado triste a desse carta branca para procrastinar. Ermelinda adora uma “vagabundagem”, tem medo do escuro, fala sem dizer nada e é um pouco espírita. Vitória é obrigada a carregar esse “peso morto”, assim sente Vitória. A moça Ermelinda apaixona- se por Martim. É magistral a descrição das sensações físicas e psicológicas que Clarice faz da paixão no corpo da mulher. (p. 90) Ermelinda, a prima indesejada. Mas Martim, o homem de olhos azuis e “sobrancelhas baixas” gosta é da mulata fogosa que trabalha na fazenda. Martim estabelece uma relação com Vitória de total subserviência. Ele obedece as mil ordens de Vitória e nada mais. Vitória o espreme, quer saber o segredo do homem, mas esse aguenta tudo e não revela. Martim achava as duas primas chatas e Ermelinda feia, “uma adolescente envelhecida”. O cavalgar junto com Vitória numa montanha com o vento batendo o fez enxergar a Vitória e a si mesmo. Quem sabe o início de um amor, principalmente consigo próprio. Foi aí que ele começou a se encontrar.
No segundo capítulo (p. 126), Martim sente- se feliz e tem a necessidade de comunicar- se. As lembranças da sua vida anterior vêm à tona, lembra do seu filho. Ermelinda continua insistindo em conquistar Martim, que tenta ignorá- la quando ela começa com as suas sandices:
(…) você não é doida. É que você vive muito isolada e já não sabe mais o que se conta aos outros e o que não se conta. (p. 130)
Clarice faz longas descrições do mundo interior de Martim, que busca a sua “reconstrução” como ser humano depois do ato de matar. Foi quando Vitória falou no alemão, o mesmo que estava trabalhando no hotel na noite do crime de Martim e agora ele desconfiava de Vitória, será que ela conhecia o seu segredo?
Agora é a época de Martim arriscar tudo, como na adolescência:
Sim. A reconstrução do mundo. É que o homem acabara de perder completamente a vergonha. Não teve sequer pudor de voltar a usar palavras da adolescência: foi obrigado a usá- las pois a última vez que tivera linguagem própria fora na adolescência; adolescência era arriscar tudo- e agora ele estava arriscando tudo. (p. 140)
Essa reconstrução desse mundo é o do seu mundo interior. A viagem psicológica de Martim o leva a sentir- se livre e a amar a vida que tem, a sua vida e o trabalho no sítio, encerrou a sua vida anterior e sentiu- se feliz.
No terceiro capítulo (p. 203), o desencanto de Ermelinda que amou, mas tinha deixado de amar; o encontro de Vitória com o alemão. O desencanto também de Martim ao descobrir a cobiça de uma criança que brincava tranquila montando tijolos e lhe exigia um presente, correu incrédulo, com a sujeira da inocência, com o olhar da menina e retrocedeu no seu processo de reconstrução, viu-se a si mesmo, sujo. Clarice usa adjetivos que hoje são considerados politicamente incorretos, será que ela os usaria hoje? Chama a menina de preta, a compara com uma prostituta, a menina é má. Nós conseguiríamos sentir o mesmo horror que sentiu martim sem esse dado da cor da pele da criança. Por outro lado, literatura nunca tem que ser politicamente correta, na ficção pode tudo. A liberdade artística está em primeiro lugar, mas que choca, choca.
Martim é chamado pelo prefeito de Vila Baixa e dois investigadores. Martim revela que não é engenheiro e sim “estatístico” e só na página 310, quase no final do romance descobrimos qual foi a motivação do crime (que não vou contar) e a revelação de que a esposa não morreu só vem na página 314, esse spoiler já está revelado em quase todas as resenhas e sinopses na internet, o que tira a graça da história e é uma pena. Ler o livro todo sem saber desse detalhe fundamental tornaria a obra muito mais interessante, mas o estrago já está feito, então vamos lá:
– Talvez o senhor fique triste, disse então com ironia o investigador de fumo preto na lapela, mas ela não morreu. A assistência chegou a tempo, e ainda conseguiu salvar a sua esposa.”

Trechos destacados do livro:


(…) Estar contente era um modo de amar. (p. 28)
(…) houve uma época que o mundo era liso como a pele de uma fruta lisa. (…) A vida naquele tempo ainda não era curta. (p.44)
(…) Aquele homem possuía uma cara. Mas aquele homem não era a sua cara. (p. 67)
(…) O que tem que ser, tem muita força. (p.82)
(…) Meditar era olhar o vazio. (p. 90)
(…) Por uma obscura necessidade de preservação, estava procurando recuperar no campo aquele minuto em que ela ousadamente aceitara amar aquele homem: procurava recuperar o minuto para destruí-lo. Mas, estonteada, talvez soubesse que também a necessidade de destruir amor era o próprio amor porque amor é também luta contra o amor, e se ela o soube é porque uma pessoa sabe. (p. 91-92)


Resumo do livro: Paixão Segundo G.H.



Obra de 1964.




Numa determinada manhã G.H. resolve fazer uma arrumação em sua casa, e inicia pelo quarto da empregada que não mais trabalhava para ela, ao entrar no quarto, se surpreende, pois imaginara que encontraria tudo bagunçado, no entanto, é tomada por uma enorme surpresa ao encontrar tudo em ordem. Ela se depara com uma barata que havia saído do armário, e imediatamente a esmaga com a porta do armário. Diante dela, estava aquela barata morta, sem a casca jorrando uma secreção branca.
Essa visão causa-lhe uma profunda náusea, a partir daí, ela passa a avaliar sua existência e conclui que já não era mais a mesma. Ela toma consciência de sua profunda solidão e passa a questionar toda sua vida. Tomada pelo nojo do inseto, a personagem não só se aproxima como dá a entender que provara daquela secreção, este ato extremo é a reviravolta que G.H. dá ao seu mundo que antes era de total condicionamento. É a revelação de sua fragilidade e da condição humana como um todo. A personagem-narradora para no tempo ao fazer os relatos e parafraseando e parodiando versículos bíblicos tenta dar uma entonação de verdade àquilo que está revelando, desta forma, fica evidente essa busca do ser através do universo religioso, o qual é trazido pela personagem de forma simbólica, ela se apropria de tais símbolos e os utiliza de forma relativizada e aparentemente irônica.
A paixão segundo G.H. é uma obra que mostra um grande trabalho de coesão, cada capítulo começa com a repetição da última frase do capítulo anterior, transformando a interrupção em um processo de constante continuidade. É uma prosa com características de um monólogo na qual a personagem-narradora levanta questões sobre a vida, sobre o amor, o papel do tempo, passado e futuro, passando por indagações sobre como o ser Deus pode influenciar nas escolhas que o homem faz. Esta obra de Clarice Lispector é destinada a qualquer pessoa que tendo inquietudes e questionamentos quanto à sua própria existência, possa rever seus sentimentos, suas atitudes e seus valores, o leitor poderá assim como G.H. buscar algum sentido para sua vida.

Resumo do livro: Uma Aprendizagem ou Livro dos Prazeres

                                               
                                                         Obra de 1969.

Nesta obra, Lóri é a personagem central, enquanto Ulisses ocupa um papel secundário, mero referencial para os pensamentos e atitudes de Lóri. O livro conta, acima de tudo, a viagem empreendida por Lóri em busca de si própria e do prazer sem culpa. Uma viagem na qual Ulisses funciona como um farol, indicando onde estão os perigos e o caminho correto para a aprendizagem do amor e da vida.
Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres é aquele tipo de leitura que ou a gente ama ou odeia. Sem meio termo. Até porque só o nome da escritora já nos causa esse sentimento. Sou fã de Clarice Lispector para todo o sempre, quem me conhece sabe muito bem. Amo os contos, as crônicas, sua forma de enxergar o mundo etc. A autora consegue ser complexa na simplicidade, simples na complexidade, intensa nos pensamentos e sentimentos. Possui uma linguagem poética e profunda. Acredito que ler Clarice Lispector é um desafio. E justamente pensando nisso tudo que escrevo essa resenha, pois, para mim, foi um desafio desbravar as páginas desse livro. Já tinha lido faz muito tempo, só que nesses últimos dias, sem ter algumas leituras novas (pois é semana de provas na faculdade), reli o livro e faço agora essa resenha.
A história é extremamente simples, trata-se da jornada de uma mulher chamada Lóri em busca de si mesma. Esse autoconhecimento é adquirido através da “aprendizagem”: Lóri deve valorizar a beleza da vida até naqueles momentos mais triviais e vivê-los tão intensamente quanto aqueles que consideramos mais importantes.
Aí você se pergunta, mas qual é o objetivo disso? Bom, ela gosta de Ulisses e ele gosta de Lóri. A questão é que eles não se sentem prontos para ficarem juntos. Na verdade, o Ulisses até se sente. Ele é mais velho, mais experiente e consegue ficar mais à vontade com os assuntos relacionados ao amor. No entanto, ele só aceitará Lóri como sua mulher quando ela achar que está preparada para isso. Ulisses acredita que ela deve “estar pronta”, ou seja, que Lóri deve amar a si mesma antes de se entregar a alguém. É uma trajetória bastante confusa e difícil para Lóri pois ela estava acostumada a se esconder atrás da dor, deixando de viver plenamente, de sentir prazer em viver.
Ulisses estava atento, imóvel. Lóri continuou:
— Parece tão fácil à primeira vista seguir conselhos de alguém. Seus conselhos, por exemplo. Já agora ela falava sério:
— Seus conselhos. Mas existe um grande, o maior obstáculo para eu ir adiante: eu mesma. Tenho sido a maior dificuldade no meu caminho. É com enorme esforço que consigo me sobrepor a mim mesma.
Ela jamais falara tantas palavras em seguida. Por isso queria evitar o principal. De repente porém notou que se não dissesse o final, nada teria dito, e falou:
— Sou um monte intransponível no meu próprio caminho. Mas às vezes por uma palavra tua ou por uma palavra lida, de repente tudo se esclarece.
(página 53)
Tudo isso é mostrado ao leitor em uma linguagem intimista, ou seja, Clarice Lispector nos mostra o que ocorre na mente dos personagens. Lembrando que a autora é um dos grandes nomes do romance de introspecção no Brasil, então, o texto é escrito de uma forma um tanto incomum: possui poucos diálogos, quase nenhuma ação mas muito (muito mesmo) dos pensamentos, sentimentos dos personagens. A narrativa é de uma riqueza psicológica extrema pois não sabemos como são os personagens fisicamente, mas conseguimos compreender sua intimidade, o seu eu.
Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres apresenta-nos uma experiência amorosa completa. O final do texto é lindíssimo e bastante sensual. A autora faz-nos testemunhar a concretização do amor a si mesmo e ao outro, o “encontro consigo mesmo em face do outro”, a entrega completa sem medo, sem estranhamento. Clarice Lispector nos mostra isso com belas palavras, uma vírgula que inicia o romance e os dois pontos que o finaliza, lembrando-nos que essa busca é incessante, interminável, eterna. Somos seres em constante mudança e percepção da existência.



Resumo do livro: Água Viva.




                                                                    Obra de 1973.
Autor da resenha: Luís Antônio Matias Soares

Água Viva, uma das mais belas obras da nossa literatura, foi composta em meados da década de 70, período histórico e político relacionado à ditadura militar no Brasil e no qual a censura e a opressão se fizeram dramaticamente presentes sobre todas as formas de arte e jornalismo. É um texto profundamente libertário tanto nos aspectos linguísticos e formais quanto naqueles referentes ao conteúdo. Dele se pode inicialmente afirmar ser um intenso monólogo no qual lentamente se vai expondo diante do leitor o panorama de um eu feminino que escreve a um tu masculino de forma lírica e poética, extravasando suas emoções, intuições, contradições e angústias. É nesse sentido, talvez, que se tenha comentado que a obra de Lispector (Wikipedia, 2011) “ultrapassa qualquer tentativa de classificação. A escritora e filósofa francesa Hélène Cixous vai ao ponto de dizer que há uma literatura brasileira A.C. (Antes da Clarice) e D.C. (Depois da Clarice).”
Mas, afinal, o que vem a ser de fato essa Água Viva: um romance, um conto, uma novela...? Água Viva se compõe de um único bloco textual que se estende ininterruptamente por 87 páginas recheadas de muitas confissões, considerações e sedução. Para além da arrojada proposta teórico-literária existente na formatação da obra, Água Viva nos remete, acima de tudo, a uma percepção mais apurada acerca da liberdade de uma autora e da própria autonomia do texto literário, visto aqui como algo vivo ou existindo por si mesmo. Nesta obra, Lispector tratará das questões que sempre atormentaram o ser humano. Ali elas circulam livres e se movimentam de um lado para o outro do texto: às vezes retrocedem, voltam-se sobre si mesmas e retornam ao ponto de partida para, em seguida, tomarem novo impulso e se lançarem na busca de novas indagações a respeito da realidade e da constituição da obra literária.
Um das principais preocupações do livro é, por exemplo, aquela relacionada à qiestão do tempo ou - como melhor designa a própria autora - ao instante-já. Logo nas linhas iniciais da obra, Lispector (1998, pag. 09) nos apresenta uma inquietante definição desse conceito: “estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de tão fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo instante-já que também não é mais. Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero apossar-me do é da coisa”. Essa - e outras escavações personalíssimas! - fazem parte da busca da autora dentro e para além do próprio texto, sendo constituídas, desmembradas e reconstruídas a partir da sensação irremediavelmente terrível e maravilhosa captada na liberdade do eu através da expressão literária.
Finalizando, talvez seja por motivos como estes que os leitores mais arrojados e arrebatados costumem dizer que os livros de Lispector devem ser devorados de imediato e antes que eles próprios nos devorem. E é exatamente isso o que se passa com essa obra-prima da literatura nacional: como uma água viva marinha, este pequeno livro possui o dom de se fazer ardente o bastante para tocar diretamente no peito das pessoas, dispondo, em suas linhas e entrelinhas, de uma forma lingüística ricamente moderna e de um conteúdo que decerto incendiará a alma e o coração dos leitores mais apaixonados.


Resumo do livro: Um Sopro de Vida - Pulsações.



Obra de 1978.




Última obra escrita por Lispector, Um sopro de vida (Pulsações) começou a ser elaborada em 1974, época em que a escritora estava gravemente doente, terminando por falecer em dezembro de 1977. Publicado postumamente, o livro resulta de três anos de escrita, desenvolvida concomitantemente à da novela A hora da estrela, ambas narrativas fortemente tomadas pela música. “Não consigo imaginar uma vida sem a arte de escrever ou de pintar ou de fazer música.” Em Um sopro de vida, a presença musical tem a ver com a busca da expressão capaz de chegar a zonas dificilmente traduzíveis por palavras.






O enredo é simples: o narrador-escritor, ao escrever sobre Angela Pralini, personagem de outras narrativas da escritora, se vê diante de um espelho invertido de si próprio. Angela, também escritora, o expõe aos próprios desejos inalcançados e traz a discussão do tênue limite entre autor e personagem. A situação provoca reflexões sobre o estar no mundo e sobre o processo criativo. Na “luta entre o ser e o existir”, instala-se uma atmosfera sensível, invadida aqui e ali pela melancolia, sem deixar de enfrentar questões essenciais para os que querem da vida muito mais do que o previsível. O narrador anuncia nas primeiras páginas: “Escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida. Viver é uma espécie de loucura que a morte faz. Vivam os mortos porque nele vivemos.”.
Além de doação, a escrita se apresenta como um vaticínio: “Minha vida me quer escritor e então escrevo. Não é por escolha: é íntima voz de comando”. Destino que implica um risco: “Escrever pode tornar a pessoa louca… Tenho medo de minha liberdade…”. No impasse de a palavra poder ou não significar o que se pensa e o que se sente, a obra apresenta a dualidade do autor-narrador, dividido entre racionalidade, instinto, corpo e liberdade. Angela, retratada como escritora em crise criativa, experimenta a profundidade do silêncio: “O dia corre lá fora à toa e há abismos de silêncio em mim”, A paixão e a dor da escrita são mostradas em carne viva. Lispector retoma um dos topoi de sua obra, os processos e modelos narrativos: seguir a via dos que obedecem à história estruturada e lógica; ou escolher o perturbador caminho do inconsciente. “Devo-me interessar pelo acontecimento? Será que desço tanto a ponto de encher as páginas com informações sobre os atos? Devo imaginar uma história ou dou largas à inspiração caótica?” Um leitor sensível haverá de se permitir acompanhar estas pulsações, indicadas no subtítulo da obra.


Resumo dos contos.

Contos: Laços de Família.

Contos de 1960.



OS CONTOS DE LAÇOS DE FAMÍLIA: SÍNTESE E PROBLEMÁTICA

1) Devaneio e embriaguez de uma rapariga. O conto enfoca uma situação de fastio e tédio que envolvem as pessoas que se deixam enclausurar pela rotina da vida moderna, enjaulando-se no dia-a-dia de um apartamento.
Cenas vagas, aéreas, vão-se deslizando pela mente embriagada de uma rapariga – casada e mãe. Os devaneios são constantes. A realidade presente, concreta – rara – muito rara.
Densa angústia a deprime e comprime. Esmaga-a o dia-a-dia, sempre cercada das mesmas coisas e do mesmo afeto.
“— Ai que não me maces! Não me venhas a rondar como um galo velho!”(7). Enclausurada no seu mundo, esmagada pela rotina diária, nada lhe agrada: “Mas ela nem sequer a responder-lhe, a alçar os ombros com um muxoxo amuado, importunada, que não me venhas a maçar com carinhos; desiludida, resignada, empanturrada, casada, contente, a vaga náusea”(15).
O protetor do marido passa-lhe pela mente. Roça-lhe o pé “por baixo da mesa, e por cima da mesa a cara dele” (15). Tinha o direito e quebrar a rotina? “— Cadela, disse a rir”(16).
Tecnicamente, o conto é narrado sob a forma de um monólogo interiorizado – o que lhe confere em caráter nitidamente introspectivo.
Nem foi preciso dizer que a personagem é portuguesa: a própria linguagem se encarregou disso. É o que se pode depreender a partir do uso de certos vocábulos (“elétricos”, “miúdos”, “fato”, “peúgas”, “pasto” etc.); construções frásicas (“estava a se pentear”, “estivessem à casa”, “se mo permite”); uso do sufixo diminutivo – ito (“frecurazita”, “vestidito”, “dedito” etc); e uso do apóstrof em muitas expressões (“d’impaciência”, “d’enfeites”, “d’arte” etc).
2) Amor. Esquematicamente, diríamos que o tema deste conto é o mundo de rotina x cego (libertação).
“Amor” é semelhante ao conto anterior: está também sob o signo da rotina, onde a personagem vive sem refletir que há todo um mundo à sua volta, diferente a cada minuto, novo a cada momento. Ana é uma bem comportada mãe de família com filhos, marido e apartamento a cuidar: “Assim, ela o quisera e o escolhera”(19).
O seu mundo, porém, está prestes a desmoronar: o sossego de sua vida-agradável-burguesa dilui-se com uma freada brusca do ônibus e com um cego que mascava chicles. A partir daqui a insegurança domina-a, dilacera-a, e Ana se desprende da pacatez do seu mundo de rotinas: Ana já não era a mesma. Tem medo de perder o seu refúgio, de desmoronar o seu lar em que “tudo foi feito de modo que um dia se seguisse ao outro” (22) e em que “se podia escolher pelo jornal o filme da noite” (30).
Então tenta desesperadamente se reencontrar. Densa angústia: “Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa!”(27). Tenta desesperadamente se fechar, se enclausurar no seu mundo interior -–no mundo de sua rotina, “afastando-se do perigo de viver”(30).
Livre do cego que a faz enxergar o mundo que a rodeia e os anseios a que renunciara como esposa, Ana, nos braços seguros do marido, “sem nenhum mundo no coração”, deita tranqüila e em paz: ”Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia”(30).
3) Uma galinha. “Uma galinha” é um conto que mais parece uma cr6onica. Trata-se de uma galinha que foge à morte e ao almoço dominical de uma família. Perseguida pelo chefe-de-família, o bichinho “tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar sem nenhum auxílio de sua raça”(32).
“Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada”(32). E, cansada de fugir, acaba sendo presa pelo perseguidor.
Mas definitivamente, aquela família não teria carne de galinha naquele domingo: “de pura afobação a galinha pôs um ovo”(33). E o chefe-de-família então decidiu:
“— Se você mandar matar esta galinha, nunca mais comerei galinha na minha vida!” (33).
E assim a galinha passou a “morar com a família”, até que seu convívio virasse rotina.
“Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se os anos”(34).
Ela era sempre uma galinha – desde “o começo dos séculos”, e seria capaz de atuar sobre seu próprio destino e a sua própria condição galinácea.
Tendo, mais uma vez, o mundo restrito da pequena burguesia tradicional como pano de fundo, o conto volta a insistir numa temática básica de Clarice: “a alteração do cotidiano atuando profundamente nos sentimentos das personagens. É interessante observar que o próprio fato voltará a ser rotina e as pessoas esquecerão suas emoções”.
4) A imitação da rosa. A realidade exterior, ou seja, o motivo de “A imitação da rosa” é aparentemente banal: Laura, a personagem central do conto, vê-se envolvida com relações rotineiras: jantar em casa de amigos, e, à espera do marido (Armando), hesita em enviar à anfitriã (Carlota) um buquê de rosas que comprara para si.
É nessa hesitação que o drama interior da personagem vai-se revelando: Laura revive um passado de angústias, imersas nas suas próprias reflexões, abandonada num mundo vazio, onde não há filhos em que a rotina e a normalidade eram um imperativo avassalador. Laura se angustia e se autoflagela com seus devaneios tortuosos de torturas.
A beleza das rosas revela a sua obsessão pela perfeição: “sinceramente, nunca vi na minha vida coisa mais perfeita”(50). E as rosas, que passam a representar uma presença no apartamento vazio, são suas: “eram lindas e eram suas” (49).
Tendo ainda como meta o perfeccionismo, outra obsessão sua é a ordem, o método, o detalhe: “seu velho gosto pelo detalhe”(40); “seu minucioso gosto pelo método”(36); enfim, “ magoava-a que Carlota desprezasse seu gosto pela rotina”.
5) Feliz aniversário. “Trata-se do conto mais irônico do livro. Por isso o mais mordaz, o que enxerga a vida com mais negativismo. Há um a perversidade implícita na forma da velhice e da vida. A rotina deixa de ser habitual para ser constante, existencial. E a ruptura dela é anual, vem de fora do mundo cansado que nos envolve, porque ele é nossa própria obra”.
O entrecho do conto, o seu ponto de partida, é um aniversário – aniversário de uma velha de 89 anos, que mora com a filha Zilda, a única que tinha condições de hospedá-la.
À noitinha, os filhos vão chegando, cada um mais superficial que o outro, o que a velha vai percebendo através do seu monólogo interior e seu aparente mau humor.
A superficialidade do tratamento fraternal, as rixas entre noras, as diferenças econômicas entre os vários irmãos, a educação diferente dos netos e bisnetos, os presentes imbecis e sem utilidades, s conversas vazias e forçadas, as aparências para “manter os laços” vão surgindo no conto e evidenciando a degradação da instituição familiar. Tudo isso deprime e escangalha a aniversariante, que, rancorosa, desabafa o seu ódio e a sua angústia:
“— Que vovozinha que nada!” explodiu amarga a aniversariante. “Que o diabo vos carregue, corja de maricas, cornos e vagabundos!”(68).
Depois todos se vão, e a aniversariante, quase nonagenária, permanece “sentada à cabeceira da mesa, ereta, definitiva, maior do que ela mesma… Será que hoje não vai Ter jantar, meditava ela. A morte era o seu mistério”(75).
6) A menor mulher do mundo. Um explorador francês (Marcel Prete) descobre na África Equatorial a menor tribo de pigmeus do mundo e, dentro dela, a menor mulher do mundo: um ser humano de apenas, 0,45cm de altura a quem batizou como a carinhoso apelido de Pequena Flor. E descobre o francês: Pequena Flor, bem como a sua tribo (likoulas) estavam na iminência de ser exterminados: os bântus vivam caçando-os com redes e devoravam-nos. Na longínqua África, um ser humano (embora de 0,45cm…) estava em perigo de morte.
O achado foi publicado em jornal “onde coube em tamanho natural”(79). Mas, em vez de provocar sentimentos de piedade nas pessoas grandes, “a menor mulher do mundo” “causa sensacionalismo e uma curiosidade mórbida motivando diferentes reações: “aflição”, “perversa ternura”, “tristeza de bicho”. Em apenas uma criança de cinco anos, a reação é espontânea e sincera.
“— Mamãe, olhe o retratinho dela, coitadinha! Olhe só como ela é tristinha!”(80)
No conto, como é fácil perceber, a sociedade rejeita qualquer ser ou coisa que não se enquadra na sua estrutura convencional e preestabelecida: “Deus sabe o que faz”(86).
7) O jantar. É o primeiro conto em que a personagem principal é masculina.
Num restaurante, entra um velho esfomeado para jantar. Num outro canto, alguém lhe espreita e acompanha os mínimos movimentos, do início ao fim da refeição. Observa-lhe as indecisões, os gesto, as mãos peludas, e mesmo os dentes postiços. Procura captar-lhe “as profundezas”, “mas é inútil. A grande aparência que vejo é desconhecida, majestosa, cruel e cega” (91).
Aqui, mais uma vez, sobressai a temática freqüente de Clarice: pessoas que fogem dos meus sentimentos, escondendo-se sob uma casca dura através de si mesmas. Pessoas que, para fugirem da própria fraqueza, chegam à impessoalidade, à quase inumanidade. É o caso do velho, que, por trás da aparente tranqüilidade, certamente traz no seu íntimo um vulcão de problemas.
É exatamente isso que motiva a explosão de raiva de que é portador o narrador e observador do velho:
“Mas eu sou um homem ainda.
Quando me traíram ou assassinaram, quando alguém foi embora para sempre, eu perdi o que de melhor me restava, ou quando soube que vou morrer – eu não como. Não sou ainda esta potência, esta construção, esta ruína. Empurro o prato, rejeito a carne e seu sangue” (92-93)
8) Preciosidade. Novamente uma figura feminina volta a ser a personagem central: uma estudante de 15 anos, que não era bonita, mas que trazia dentro de si uma preciosidade – algo “que era intenso como uma jóia. Ela”(95).
Introspectiva, tímida, medrosa, excessivamente pudica, ela se esconde de tudo e de todos, procurando passar sempre despercebida, utilizando um aparência sóbria e fria como seu único meio de defesa: “Estou sozinha no mundo” Nunca ninguém vai me achar, nunca ninguém vai me amar! Estou sozinha no mundo!”.
Este “estar sozinha no mundo” era a sua preciosidade. Até que um ida foi tocada e o mistério de sua preciosidade maculado por passos que a seguem na madrugada sombria e algodoada. Então passa a ser mulher e “ganhou os sapatos novos”(108): ela se enquadra na estrutura e convenções sociais.
9) Os laços de família. Aqui é mãe (Severina) e filha (Catarina) que não se entendem.
O genro (Antônio), casado com Catarina, completa o triângulo da rotina e do desamor, reaparecendo, plenamente, a temática fundamental de Clarice: “não esqueci de nada? Perguntava pela terceira vez a mãe” (109). Sim. Ela esquecera alguma coisa: o sentimento, o amor que não existe entre elas, “como se mãe e filha” fosse “vida e repugnância” (112). “Mas agora era tarde demais. Parecia-lhe (a Catarina) que deveriam um dia Ter dito assim: sou tua mãe, Catarina E ela deveria ter respondido: e eu sou tua filha” (113). Entre elas não havia mais sentimento. E, para perceberem isso, foi preciso, mais uma vez uma “freada brusca” que as despertasse. A rotina superficializada os sentimento; o enquadramento social exigira comportamentos pré-determinados, palavras necessárias e vazias de significado; entre elas só havia palavras carregadas de atrito, de desencontro, de monotonia e irritação.
No seu apartamento, onde “tudo corria bem”, trancado nas quatro paredes do seu “Sábado”, o genro lê indiferentemente:
“— Catarina, esta criança ainda é inocente!”
Por trás dessa situação está uma verdade terrível: ou viver dentro da rotina ou quebrá-la, provocando neste último caso, o caos, o colapso, o pânico: o desvendamento de uma verdade monstruosa; verdade esta tão gritante, tão caótica, que ameaça a ruína completa. A única solução, então, “o único refúgio é a remodelação paciente da rotina, para que a verdade novamente seja contida: a fuga eterna dos homens de si mesmos!”
“— Depois do jantar iremos ao cinema”, resolveu o homem (120).
Com relação à técnica, é curioso observar como a autora realça os olhos de Catarina: analisa-a pela expressão dos seus olhos, porque os olhos, sem dúvida, são a janela da alma.
10) Começos de uma fortuna. Aqui são colocados dois problemas que aprecem ser responsáveis por grande parte das angústias, desequilíbrios mentais e crimes da atualidade: o dinheiro e a falta de comunicação dentro do próprio lar. Na sociedade moderna, dita “de consumo”, o homem tece um mundo de sonhos e aspirações “totalmente” impossíveis sem o dinheiro que ele, na maioria das vezes, não tem. Só se lhe apresentam duas saídas: ele toma emprestado e vai-se envolvendo em dívidas sempre maiores: “Mas depois eu tenho de devolvê-lo a você e já estou devendo ao irmão de Antonio”(126), ou perde-se em conjectura: “se eu tivesse dinheiro… pensava Artur”(121). Artur, menino ainda, dá os primeiros passos na construção do que será um dia a sua fortuna: talvez uma dezena de quimeras, talvez centenas de promissórias.
“Papai, chamou Artur docilmente, com as sobrancelhas franzidas; papai, como são promissórias?” (129).
Artur vai aprendendo as manhas da vida e das pessoas: “Pelo visto, disse desviando do amigo a raiva, pelo visto basta você Ter uns cruzeirinhos que mulher logo fareja e cai em cima” (126).
As circunstâncias vão crescendo em importância, a necessidade de ser aceito se impõe, e Artur, “… à porta do cinema não pode deixar de pedir emprestado a Carlinhos, porque lá estava Glorinha com uma amiga”(127).
Dentro do lar, sua mãe, entregue demais às obrigações, não entendia seu problema: “A mão olhou-o seca como a um estranho, No entanto ele era mais parente que seu pai, que, por assim dizer, entrara na família”(122).
Patenteia-se neste conto, como em outros, também a situação dramática da mulher dona de casa, esposa e mãe, associada ao fogão e a trabalhos domésticos, sem outra função que a de procriar e aprontar roupa e comida para os hóspedes: marido e filhos.
“Coma mais batatas, Artur, tentou a mãe inutilmente arrastar os dois homens para si”(129).
Mas eles estavam perdidos sem seu mundo, falando de promissórias.
“Promissórias, dizia o pai afastando o prato, é assim: digamos que você tenha uma dívida”(129)
11) Mistério em São Cristóvão. Neste conto, podemos observar tendências surrealistas. Clarice explora o subconsciente construindo uma simbologia complexa e difusa. A partir do próprio título, verificamos, de certa forma, o caráter velado do acontecimento. O caso se dá numa noite de maio, em casa de uma família onde “as crianças têm ido diariamente à escola, o pai mantém os negócios, a mãe trabalhou durante anos nos partos e na casa, a mocinha está se equilibrando na delicadeza de sua idade (19 anos), e a avó atingiu um estado!”(132). Nessa noite, após cada um ir se deitar, seguindo os padrões de uma vida sem graça, sem novidades, tem lugar o episódio: três mascarados, um galo, um touro e um demônio, invadem o jardim da casa para colher jacintos. “Um jacinto para pregar na fantasia” (133). O intuito dos três não é consumado porque descobrem o rosto da jovem olhando-os justamente quando haviam quebrado a haste de uma das flores.
“Nenhum dos quatro saberia quem era o castigo do outro. Os jacintos cada vez mais brancos na escuridão. Paralisados eles se olhavam” (134).
“Um galo, um touro, um demônio e um rosto de moça haviam desatado a maravilha do jardim…” (135).
Algo aconteceu entre estas quatro criaturas, algo que as perturbou profundamente, algo que quebrou a rotina maçadora de suas vidas comuns. No jardim, por instantes, os quatro se fixaram, e algum mistério de não sei onde, se fez ou desfez. No entanto, “era um toque perigoso para as quatro imagens” (135).
Pressentindo o perigo, os três mascarados fogem, e a moça grita. A família volta sua atenção e cuidados para a mocinha cuja única expressão fora o grito, e, entre seus cabelos, apareceu um fio branco. Por instantes, a família, com exceção das crianças, se preocupa com o fato. De alguma forma o acontecimento os toca, e eles se tornam “atentos e inquieto?. “A mocinha já não vivia a perscrutar” (136), e tudo aos poucos volta ao de sempre: “…a avó, de novo pronta a se ofender, o pai e a mãe fatigados, as crianças insuportáveis…” (137).
Tal como nos contos “Os laços de família” e “Amor’, onde a freada do táxi e a arrancada do bonde representam momentos de tomada de consciência, aqui, em “O mistério de São Cristóvão”, o momento crucial se dá quando há o grito da moça, sinal de uma dor e de um espanto que se sucedem à experiência mágica que interrompe o fluir monótono dos dias sem sentido.
12) O crime do professor de Matemática. Este é outro conto que apresenta uma personagem masculina no papel principal. Trata-se de um professor de Matemática que encontra um cachorro morto numa esquina e resolve enterrá-lo, buscando, com isso, punir-se pelo fato de ter abandonado seu próprio cão numa outra cidade. Após fazê-lo, o professor sente-se livre e começa a pensar no seu cão. Assim, através de um monólogo de grande beleza e profundidade, Clarice vai deixando suas pinceladas de filosofia de vida: o cão (José) pertencera desde filhotinho ao professor de Matemática e juntos haviam brincado e se entendido. No entanto, o que não permitiu a continuidade deste relacionamento foi uma exigência do cão: “De si mesmo, exigias que fosses um cão. De mim, exigias que eu fosse um homem” (144).
O professor, incapaz de cumprir tal requisito, escolheu abandonar o cão, e, com ele, a preocupação de procurar satisfazer a exigência. Abandona-o com alivio.
“Com alivio sim pois exigias com a incompreensão serena e simples de quem é um cão heróico – que eu fosse um homem” (145).
O monólogo prossegue e a lucidez do professor vai aumentando. Ele conclui que, na verdade, cometera tal crime por ser uni “crime menor”, pelo qual “ninguém vai para o inferno”. Ninguém poderia condená-lo por ter somente largado um certo cão à sua própria sorte. Ao ver o outro cão, porém, o professor sente que deveria compensar sua atitude. Lembramos aqui a “lei da equivalência das janelas” ou “lei da compensação moral”, explicada em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, através da qual o homem busca sempre justificar seus atos ou idéias com outros atos e idéias. O processo de aclaramento da visão interior continua e o professor reflete que talvez “o cão abandonado exigisse dele muito mais que a mentira”, exigisse que ele ‘fosse um homem – e como homem assumisse o seu crime” (147). Premido por este raciocínio, o professor desenterra o outro cão que há pouco enterrara e volta para a sua casa, a sua família. Cremos perceber no José o chamamento para um exercício consciente de uni papel – o papel de HOMEM -, ao qual os homens quase sempre querem fugir. José é tudo aquilo que nos impele à atitude, nos exige um parecer, nos lembra da vida. Se o professor tivesse compensado o seu crime com o enterro de outro cão, ele estaria se esquecendo do chamamento do próprio intimo para a realização como HOMEM.
13) O búfalo. A exemplo de “Os laços de família”, temos aqui uni conto de grande intensidade dramática. Focaliza uma mulher infeliz no amor, rejeitada pelo homem a quem só sabe amar e “cujo crime único era o de não amá-la” (151).
Esta mulher trazia no peito, “que só sabia resignar-se, que só sabia suportar, só sabia pedir perdão, só sabia perdoar, só aprendera a ter a doçura da infelicidade, e só aprendera a amar, a secreta vontade de matar, a necessidade de odiar “(155).
“Onde aprender a odiar para n~2’o morrer de amor? E com quem?” (155).
A mulher vai ao jardim zoológico na tentativa de aprender com os animais este sentimento que procura, mas, como é primavera “o mundo das bestas se cristianiza em patas que arranham mas não dói…” (155).
Presa de si mesma, enjaulada no seu amor, ela tudo enxerga transbordando AMOR. Até que viu o búfalo negro ao entardecer. Seja pelo cansaço, por ser pôr-de-sol, por ele ser grande e negro, seja pelo que for, o fato é que o búfalo a faz sentir o que buscava: “a vontade vagarosa de matar”, o ódio, enfim. E copiando a tranqüilidade nervosa do bicho, ela pode dizer: “Eu te amo”, com ódio. O conhecimento do ódio de certo modo a faz morrer um pouco e ela cai, perto da cerca do búfalo guardando a imagem de contornos suaves e duros, olhos pequenos e calmos.






Conto: A Legião Estrangeira.




                                                   Conto de 1964.

O conto começa com a protagonista lembrando-se de Ofélia e seus pais que conhecera, mas há muito tempo não via mais. “Estou tentando falar daquela família que sumiu há anos sem deixar traços em mim”.
A protagonista, preocupada com a família que foi embora sem dizer para onde, surpreendeu-se com o aparecimento de um pinto na sua casa, doado por alguém, não disse quem, bem na véspera do natal.
Conta a protagonista, da admiração de todos na casa, seu marido e seus filhos, todos ficaram surpresos, tentando adivinhar o que o pinto estava fazendo ali nessa ocasião. “Mas o natal é amanhã, disse acanhado o menino mais velho. Sorrimos desamparados curiosos”.
A protagonista narradora define o fato do pinto como um sentimento que vai se modificando como a água que vai se transformando a cada ocasião que se lhe apresenta: “mas sentimentos são de um instante. Em breve como a mesma água já é outra quando o sol a deixa mais leve, e já é outra quando se enerva e tenta morder uma pedra, é outra ainda no pé que mergulha – em breve já não tínhamos no rosto apenas aura e iluminação. Em torno do pinto estávamos bons e ansiosos”.
Ela, a protagonista narradora, fala da bondade e o efeito que ela provoca em cada pessoa de sua família e nela. No marido rapidez e severidade, nos meninos, um ardor, e nela protagonista, intimida. Como a água os sentimentos iam se transformando. “Daí a pouco olhamos enredados pela falta de habilidades de sermos bons, e o sentimento já era outro, da falta de bondade para tínhamos no rosto a responsabilidade de uma aspiração, o coração pesado de um amor que já não era mais livre. Passado o momento do pinto, os adultos já o tinham esquecido, mas os meninos não, ficara uma indignação.
Não só indignação, mas também acusação de que nada fazíamos pelo Pinto e pela humanidade”. Constrangidos, pai e mãe ainda não haviam dito para os filhos que as coisas são assim mesmo. Então a protagonista confessa o quanto é difícil dizer para os filhos de que as coisas eram assim mesmo as aceitávamos.
“E o pinto continuava ali sobre a mesa, piando cheio de medo. Não tinha como acalmá-lo porque ele não conhecia sentimentos”. Nesse momento em que o pinto estava ali sobre a mesa com medo, a protagonista desejou que o pinto fosse igual os humanos e sentisse como os humanos o sentimento do amor e soubesse que ali, ele, como obra de Deus, estava sendo amado.
“E o menino menor não suportou mais, e perguntou: você quer ser a mãe dele? Eu disse que sim” Os quatro meninos ficaram então esperando que ela tomasse uma atitude em favor do pinto. Ela, a protagonista narradora fala dos sentimentos e do amor que o pinto estava provocando na família. Ela como mãe, como o nascimento é próprio das mães. Tentou isolar-se do problema.
Diante de tamanha crise no amor a protagonista se presta a uma reflexão e percebe que um dia, sem ela saber com certeza a amaram.
Então estendeu a mão e pegou o pinto.
Ao pegar o pinto lhe veio à lembrança novamente Ofélia. Agora ela relembrava não só Ofélia. Mas também seus pais. Com carinho relembrou do dia no banco da praça em que conversava com a mãe de Ofélia, uma mulher trigueira que fazia os homens a olhar pela segunda vez, do seu desejo de fazer um curso para fazer bolos. Lembrou-se também do pai de Ofélia, homem bem apanhado com o firme desejo de se dar bem com seu ramo de negócio, gerente de hotel ou até mesmo como dono de um.
Mas quem eram as personagens que compunham aquela família misteriosa?
A protagonista conta que o contato com a família se fez através de Ofélia. Ofélia, menina inteligente, como descreve a narradora, sentava-se com jeito, tinha opinião formada sobre tudo.
Dava conselhos para a educação dos filhos, dava instruções e advertências. Banana não se mistura com leite. Mata. Para tudo tinha uma resposta. A última palavra sempre era dela. Tinha o hábito de dar opinião sobre tudo, criticar procedimentos e analisar.
Uma vez chegou a chamar a protagonista de esquisita. Esquisita porque comprava verduras demais para a semana e acabava estragando na geladeira, outra vez porque e comprou de menos e não chegava até o fim da semana. Tudo isso irritava a protagonista que sempre tentava induzida ao erro, sempre em vão, salvo um dia quando lhe foi perguntado o que era geografia e ela respondeu: “Geografia é um modo de estudar”. O erro lhe valeu conselhos como: vai errando devagar. É errado que se aprende.
Ofélia era uma menina inteligente, mas a protagonista desejava livrar-se dela: existe uma menina mais antipática? Um dia parecia que este dia se aproximava e rapidamente.
Bateram a porta da casa para a surpresa da protagonista narradora, lá estava a mãe de Ofélia.
Por acaso Ofélia Maria esta aí?
Recebendo resposta afirmativa, a mãe de Ofélia parecia estar ofendida e reprovando as visitas de Ofélia na casa da vizinha. Esta atitude da mãe deixou preocupada a protagonista, pois nunca havia feito nada que desagradasse a menina. Enquanto elas iam embora ela percebeu o quanto a mãe protegia a filha. Finalmente, pensou ela, Ofélia não vira mais aqui. A mãe dela deve me odiar, pensa que eu quero roubar a sua filha.
Não foi o que aconteceu, Ofélia continuou a visitar a casa da amiga. Voltava sempre para reparar nos erros da amiga dar-lhe conselhos.
O que Ofélia realmente queria? Nem mesmo a protagonista tinha a resposta.
Mais tarde Ofélia apareceu para a visita costumeira. Assuntou-se com a presença do Pinto e fez perguntas, todas respondidas.
A partir daí o pinto gerou uma situação de consciência na protagonista. A menina inteligente virou criança. A protagonista que antes via a menina como chata, agora a passa ver como uma criança que quer resposta da vida. A menina se sentiu impelida a roubar o pinto, que segundo sua dona, esta atitude mostrou que a menina tinha inveja porque ela não tinha aquele pinto.
“Depois que o tremor da cobiça passou, o escuro dos olhos tremeu todo: não era a um rosto sem cobertura que eu a expunha agora eu a expusera ao melhor do mundo: a um pinto.
Sem me verem, seus olhos quentes me fitavam numa abstração intensa que se punha em íntimo contato com minhas intimidades”.
A menina ali, diante da protagonista, estava cheia de dúvidas, de espanto, com a pergunta estampada no rosto e nos olhos cuja resposta a protagonista não dava por conta da moralidade.
A protagonista foi percebendo a angústia da menina. Como também a sua angústia de ver aquela menina ali diante dela se transformando numa criança e desejando ser dela ou se ala mesma. Ofélia voltou à pergunta: “É um pinto?
Ele está na cozinha.
Você pode ir à cozinha brincar com o pintinho”.
Aqui a protagonista deixa para a menina a escolha de ir ou não ir: “sei que não deveria ter dado a escolha.
Só vão ver o pintinho se você quiser”.
A partir daí para diante a protagonista faz uma análise psicológica do aceitar e do odiar.
Era preciso que a menina a odiasse para que ela, a protagonista pudesse resistir a seu ódio, ao seu sofrimento.
Reclama a protagonista: ao me usar me machucava com força; ela me arranhava ao tentar agarrar-se a minhas paredes lisas. Afinal sua voz soou em baixa e lenta raiva: - Vou ver o pinto na cozinha.
Com a dignidade e a elegância de sempre foi até a cozinha, mas voltou logo.
“Mas é um pintinho, disse. Ri, Ofélia olhou-me ultrajada. De repente riu, rimos juntas. Ofélia pôs o pintinho no chão e começou a brincar com ele, se corria atrás dele”.
Passada a êxtase pelo pinto, finalmente Ofélia resolveu ir embora. Depois de ir à cozinha levar o pinto despediu-se da amiga e saiu. A narradora protagonista conta assim o final da história de Ofélia: "Relutante foi afastando devagar a cadeira do caminho. Até parar devagar à porta da cozinha. No chão estava o pinto morto. Ofélia, inutilmente tentei eu atingir o coração da menina calada. OH! Não se assuste muito, às vezes a gente mata por amor, mas juro que um dia a gente esquece, juro. Eu estava agora cansada, sentei-me no banco da cozinha.
Sentada como se todos esses anos eu tivesse com paciência esperado na cozinha, Como na páscoa nos é prometido, em dezembro ele volta. Ofélia é que não voltou: Cresceu. Foi ser a princesa hindu por quem no deserto sua tribo espera".




Conto: Felicidade Clandestina.


Conto de 1971.




De um lado, a personagem-protagonista da história, uma garota de boa aparência e pobre que é apaixonada pelos livros. Do outro, sua amiga, uma menina perversa e feia, que tem verdadeiro pavor pela leitura, embora seja filha de dono de livraria. A primeira, com verdadeiro talento para "santa", sempre pedia livros emprestados a segunda, a qual de forma irônica, prometia dá-lhes em empréstimo, contudo nunca o fazia.
A tortura se deu de forma mais cruel ao dizer a menina que tinha o livro Reinações de Narizinho de Monteiro Lobato. O sonho da nossa boa menina era lê-lo! Diz que vai emprestá-lo, porém não o faz. Dando a ela a esperança de que o faria depois.
Desse modo, a menina todos os dias ia esperançosamente até a casa da amiga para pegá-lo, mas sempre ouvia a mesma desculpa de que o livro já havia sido emprestado a outra pessoa. Tamanha crueldade tinha aquela pequena!
Num desses dias em que a sorte não é companheira, a cruel menina em mais uma recusa de emprestar o tão cobiçado livro, foi surpreendida por sua mãe, que de nada sabia. Esta pediu explicações a ambas. E logo entendeu que a sua filhinha estava agindo de má fé, pois o livro nunca fora emprestado a ninguém. Decepcionada com a filha , ela a obriga a emprestar o livro no mesmo instante, dando prazo indeterminado para ficar com ele.
A boa menina recebe-o e sai radiante. Ao chegar em casa começou a ler sem pressa, prolongando sempre mais aquele prazer! Era uma felicidade! E por ser clandestina, valia a pena, mais ainda , aquele "caso de amor"!!!


Conto: A Imitação da Rosa.
                                                     
                                                        Conto de 1973.

Laura era uma esposa submissa aos desejos do marido. Não tiveram filhos, por isso, viviam sempre na mesma rotina. Costumavam jantar com um casal de amigos, Carlota e João. O maridos falavam de notícia, enquanto as esposas falavam de assuntos caseiros. Carlota era mais agitada e falante, já Laura era mais quieta, o que a deixava triste, por desejar ser como a amiga.
Em um certo dia, Laura estava muito atarefada, pois sairia para jantar com o casal assim que o marido voltasse do trabalho. Ela costumava preparar tudo com muita antecedência para não chegar atrasada, para deixar a casa limpa antes de sair e para ajudar o marido a se trocar.
Foi quando olhou as rosas em um jarro na sala de sua casa. Rosas tão lindas que a incomodaram. Laura decidiu mandá-las de presente para Carlota, com quem jantaria naquela noite. Passou por um momento de dúvida, pois aquelas rosas, de repente, assumiram um significado novo. Laura ficou com vontade de mantê-las em casa, mas, mesmo assim, foi forte e mandou a empregada entregá-las.
Sua dedicação às rosas foi tanta que acabou perdendo a hora de arrumar-se antes do marido chegar, mas ele ficou aliviado ao vê-la tão feliz naquele dia.



Conto: A Via Crucis do Corpo.


Conto de 1974.




O conto “O corpo” é um relato de caráter anedótico que é narrado em terceira pessoa.
No início do conto existe um triângulo amoroso que é bastante estável. Xavier, comerciante bem sucedido, vive, na mesma casa, com duas mulheres que se respeitam e que aceitam a situação com bastante naturalidade. A estabilidade das relações amorosas entre Xavier, Carmem e Beatriz é rompida quando elas descobrem que existe uma outra mulher na vida de Xavier: uma prostituta que ele visitava periodicamente. A partir de então, Carmem e Beatriz vão se afastando – pouco a pouco – de Xavier, ao mesmo tempo em que vão se tornando mais unidas. A monotonia do cotidiano aliada à decepção sofrida pelas duas mulheres faz com que elas, depois de uma reflexão sobre a impossibilidade de transcender a morte, decidam antecipar o inevitável, e terminam por deliberar a morte de Xavier – plano executado pelas próprias mulheres. Depois de alguns dias do desaparecimento de Xavier, a polícia é chamada e descobre que ele fora enterrado no jardim de sua própria casa. Surpreendentemente, os policiais decidem que o melhor a fazer é esquecer tudo aquilo e sugerem à Carmem e Beatriz que arrumem suas malas e se mudem para o Uruguai.
Xavier, o bígamo, é descrito como um homem “truculento e sanguíneo, muito forte esse homem”, e com características que no decorrer do texto se associam ao touro. Esta personagem possui um apetite voraz, tanto no que se refere à alimentação quanto à sexualidade. Inclusive, há no texto uma relação direta entre comida e sexualidade: Xavier bebeu vinho francês e comeu sozinho um frango inteiro (p. 28). Outra associação feita a Xavier é a do super-homem, associação que coincide perfeitamente com a metáfora do touro: animal associado à potência sexual, às forças da criação e da natureza. Em um sentido mitológico, ainda podemos nos recordar que o Minotauro de Creta era um ser ávido, que necessitava ser alimentado anualmente por catorze jovens trazidos de Atenas.
O fragmento abaixo parece confirmar a imagem de touro que é construída no decorrer do relato: Xavier engordou três quilos e sua força de touro acresceu-se (p. 30). Ou ainda, quando é descrita a forma como ele se alimenta: Xavier comia com maus modos: pegava a comida com as mãos, fazia muito barulho para mastigar, além de comer com a boca aberta.
Xavier é um personagem que possui uma constituição cômica. A ridicularidade com que é descrito, como homem grosseiro e inculto, contribui para o efeito cômico produzido nas ações deste personagem.
Todo o texto está permeado por um jogo de números, que muitas vezes parecem ser desnecessários ao conto, mas que colaboram para que este efeito cômico se realize com mais intensidade:
Xavier vivia com duas mulheres.[...] Cada noite era uma. À vezes duas vezes por noite. (p. 27).
A noite do último tango em Paris foi memorável para os três. [...] almoçaram às três horas. [...] Xavier tinha quarenta e sete anos. Carmem tinha trinta e nove e Beatriz já completara os cinqüenta. (p.28).
Às seis horas foram os três para a igreja. [...] Os três na verdade eram quatro [...] Foi uma azáfema a preparação das três malas [...] Sentaram-se em banco de três lugares. (p. 29).
Durante três dias ele não disse nenhuma palavra às duas [...] Ao teatro os três não iam. (p. 30).
Às três horas da manhã Xavier teve vontade de ter mulher [...] Que se arranjasse com a terceira mulher. [...] As duas de vez em quanto choravam... (p. 31).
Na cozinha há dois facões [...] somos duas e temos dois facões. (p. 33).
[...] com o auxílio de duas pás abriram no chão uma cova. (p. 34).
No jardim havia “Sete pessoas”. (p. 36).
A insistente repetição de números, além do efeito cômico, parece querer relativizar fatos que na verdade são fora do comum, como no exemplo: Às seis horas da tarde os três foram para a igreja. A opção acima em vez de outra, como por exemplo: "no domingo à tarde Xavier e suas mulheres foram à igreja", revela que existe um esforço por parte dos narrador, em fazer com que uma situação insólita, se torne familiar por meio de recursos atenuantes.
Essa relativização do fato incomum, ao que parece, funciona também como um recurso de ironia. Pelo menos é o que acontece quando se diz que: às seis horas da tarde os três foram para a igreja. Sabemos que a bigamia é condenada pela maioria das igrejas, no entanto, o fato de os três amantes terem ido à igreja parece não incomodar a ninguém. Há uma espécie de naturalização de um costume pouco natural. Aliás, o texto não fornece muitas informações à respeito do comportamento alheio diante do triângulo Xavier / Beatriz/ Carmem. A única informação que se tem a respeito do olhar alheio é a seguinte: Todo mundo sabia que Xavier era bígamo: vivia com duas mulheres.(p. 27)
A ironia resulta do fato de as personagens assumirem com naturalidade o que muitos escondem. Muitos bígamos vão à missa, mas não é comum aparecer na igreja com as duas mulheres. Mas apenas o humorista, como no caso de Clarice, possui o dom, ou a “presença de espírito” para mostrar o lado virtuoso daquilo que é culturalmente inaceitável.
A construção das personagens Carmem e Beatriz, parece ocorrer por meio de oposições. Tal fato sugere a idéia de complementação. Os três parecem formar uma unidade que é ameaçada com o aparecimento do quarto elemento: a prostituta. Tal figura é a personagem que desestabiliza o triangulo. Ela não é aceita por Carmem e Beatriz, que entre si não tinham ciúmes, mas que não toleram um elemento alheio ao triangulo harmoniosamente constituído. A idéia de harmonia entre os três amantes está tão presente no conto que, há uma passagem em que eles são comparados a uma famosa composição musical: Às três horas da tarde foram os três para a igreja. Pareciam um bolero. O bolero de Ravel.
A presença do cômico-grotesco, manifestada em Xavier, é também bastante perceptível na configuração de Beatriz, personagem que não possui o senso do ridículo:
Beatriz comia que não era vida. Era gorda e enxudiosa. (p. 27)
[...] Carmem era mais elegante. Beatriz, com suas banhas escolhia biquíni e um sutiã mínimo para os enormes seios que tinha. [...] Beatriz saiu e comprou uma minissaia. (p. 29)
A vida lhes era boa.
O cotidiano está bem assinalado em "O corpo". Como já foi mencionado, no início do conto há uma estabilidade conjugal mantida entre as três personagens, mas esta estabilidade é rompida pela existência da terceira mulher. A isso, soma-se um certo dissabor provocado pela rotina do cotidiano: E assim era, dia após dia. [...] Passavam-se dias, meses, anos. Ninguém morria. (p. 28).
O desejo de vingança aliado à impossibilidade de transcender a morte contribuiu para que Carmem e Beatriz antecipassem a morte de Xavier, provocando-a: Vamos esperar que Xavier morra de morte morrida? [...] Acho que devemos as duas dar um jeito. (p. 32)
A aparente naturalidade com que Carmem e Beatriz decidem e executam o crime resulta em um efeito trágico-cômico:
Foram armadas. O quarto estava escuro. Elas fraquejaram erradamente, apunhalando o cobertor. Era noite fria. Então elas conseguiram distinguir o corpo adormecido de Xavier. [...] estavam exaustas. Matar requer força. Força humana. Força divina. (p. 34)
A potência sexual e energia criadora de Xavier era tanta que a terra onde ele foi sepultado se tornou fecunda e ali floresceram rosas.
Mas há um momento culminante que, apesar de divertido, reduz toda a narrativa a um silêncio. Este é o momento em que a polícia cava o jardim e encontra o corpo de Xavier. A solução do crime, dada pelo policial, é totalmente inusitada: Vocês duas [...] arrumem as malas e vão viver em Montevidéu. Não nos dêem maior amolação. E as duas mulheres disseram: muito obrigada. E Xavier não disse nada. Nada havia mesmo a dizer. (p.37)
Neste fragmento o leitor é surpreendido pelo inesperado e ilógico. Ele espera que a polícia incrimine as mulheres, mas o que acontece é justamente o contrário, há um descaso em relação ao crime que elas cometeram. A atitude da polícia pactua com a ideia de mundo ao revés, ideia que coincide com o efeito trágico-cômico dado ao texto.
O final inusitado encerra um contra-sentido, que impede a sensação de terror ou piedade, fato que elimina o caráter sério do assassinato.
Por isso não há respostas. O final do conto nos faz sentir que não se pode extrair nenhuma moral da historia. Não há catarse, como na tragédia tradicional. Não há respostas. O leitor se encontra diante de um vazio profundo, não que não lhe permite pensar a respeito. Não há o que pensar, logo, a única coisa que lhe resta é rir e sorrir à beira do abismo.


Conto: Onde Estivestes a Noite?

Conto de 1974.

A noite era uma possibilidade excepcional. Em plena noite fechada de um verão escaldante um galo soltou seu grito fora de hora e uma só vez para alertar o início da subida pela montanha. A multidão embaixo aguardava em silêncio.
Ele-ela já estava presente no alto da montanha, e ela estava personalizada no ele e o ele estava personalizado no ela. A mistura andrógina criava um ser tão terrivelmente belo, tão horrorosamente estupefaciente que os participantes não poderiam olhá-lo de uma só vez: assim como uma pessoa vai pouco a pouco se habituando ao escuro e aos poucos enxergando. Aos poucos enxergavam o Ela-ele e quando o Ele-ela lhes aparecia com uma claridade que emanava dela-dele, eles paralisados pelo que é Belo diriam: "Ah, Ah". Era uma exclamação que era permitida no silêncio da noite. Olhavam a assustadora beleza e seu perigo. Mas eles haviam vindo exatamente para sofrer o perigo.
[...]
Aquela que de noite gritava "estou em espera, em espera", de manhã, toda desgrenhada disse para o leite na leiteira que estava no fogo:
- Eu te pego, seu porcaria! Quer ver se tu te mancas e ferves na minha cara, minha vida é esperar. É sabido que se eu desviar um instante o olhar do leite, esse desgraçado vai aproveitar para ferver e entornar. Como a morte que vem quando não se espera.
Ela esperou, esperou e o leite não fervia. Então, desligou o gás.
No céu o mais leve arco-íris: era o anúncio. A manhã como uma ovelha branca. Pomba branca era a profecia. Manjedoura. Segredo. A manhã preestabelecida. Ave-Maria, gratia plena, dominus tecum. Benedicta tu in mulieribus et benedictum frutus ventri tui Jesus. Sancta Maria Mater Dei ora pro nobis pecatoribus. Nunca et ora nostrae morte Amem.
Padre Jacinto ergueu com as duas mãos a taça de cristal que contém o sangue escarlate de Cristo. Eta, vinho bom. E uma flor nasceu. Um flor leve, rósea, com perfume de Deus. Ele-ela há muito sumira do ar. A manhã estava límpida como coisa recém-lavada. 

AMÉM
Os fiéis distraídos fizeram o sinal da Cruz.
AMÉM

DEUS

FIM







Conto: A Bela e a Fera.






Conto de 1979.





Bem, então saiu do salão de beleza pelo elevador do Copacabana Palace Hotel. O chofer não estava lá. Olhou o relógio: eram quatro horas da tarde. E de repente lembrou-se: tinha dito a "seu" José para vir buscá-la às cinco, não calculando que não faria as unhas dos pés e das mãos, só a massagem. Que devia fazer? Tomar um táxi? Mas tinha consigo uma nota de quinhentos cruzeiros e o homem do táxi não teria troco. Trouxera dinheiro porque o marido lhe dissera que nunca se deve andar sem nenhum dinheiro. Ocorreu-lhe voltar ao salão de beleza e pedir dinheiro. Mas - mas era uma tarde de maio e o ar fresco era uma flor aberta com o seu perfume. Assim achou que era maravilhoso e inusitado ficar de pé na rua - ao vento que mexia com os seus cabelos. Não se lembrava quando fora a última vez que estava sozinha consigo mesma. Talvez nunca. Sempre era ela - com outros, e nesses outros ela se refletia e os outros refletiam-se nela. Nada era – era puro, pensou sem se entender. Quando se viu no espelho – a pele trigueira pelos banhos de sol faziam ressaltar as flores douradas perto do rosto nos cabelos negros – conteve-se para não exclamar um “ah!” – pois ela era cinqüenta milhões de unidades de gente linda. Nunca houve – em todo o passado do mundo – alguém que fosse como ela. E, depois, em três trilhões de trilhões de ano – não haveria uma moça exatamente como ela.
“Eu sou uma chama acesa! E rebrilho e rebrilho toda essa escuridão!”
Este momento era único – e ela teria durante a vida milhares de momentos únicos. Até suou frio na testa, por tanto lhe ser dado e por ela avidamente tomado.
“A beleza pode levar à espécie de loucura que é a paixão.” Pensou: “estou casada, tenho três filhos, estou segura.”
Ela tinha um nome a preservar: era Carla de Sousa e Santos. Eram importantes o “de” e o “e”: marcavam classe e quatrocentos anos de carioca. Vivia nas manadas de mulheres e homens que, sim, que simplesmente “podiam”. Podiam o quê? Ora, simplesmente podiam. E ainda por cima, viscosos pois que o “podia” deles era bem oleado nas máquinas que corriam sem barulho de metal ferrugento. Ela, que era uma potência. Uma geração de energia elétrica. Ela, que para descansar usava os vinhedos do seu sítio. Possuía tradições podres mas de pé. E como não havia nenhum novo critério para sustentar as vagas e grandes esperanças, a pesada tradição ainda vigorava. Tradição de quê? De nada, se se quisesse apurar. Tinha a seu favor apenas o fato de que os habitantes tinham uma longa linhagem atrás de si, o que, apesar de linhagem plebéia, bastava para lhes dar uma certa pose de dignidade.
Pensou assim, toda enovelada: “Ela que, sendo mulher, o que lhe parecia engraçado ser ou não ser, sabia que se fosse homem, naturalmente seria banqueiro, coisa normal que acontece entre os “dela”, isto é, de sua classe social, à qual o marido, porém, alcançara com muito trabalho e que o classificava de “self made man” enquanto ela não era uma “self made woman”. No fim do longo pensamento, pareceu-lhe que – que não pensara em nada.
Um homem sem uma perna, agarrando-se numa muleta, parou diante dela e disse:
- Moça, me dá um dinheiro para eu comer?
“Socorro!!!” gritou-se para si mesma ao ver a enorme ferida na perna do homem. “Socorre-me, Deus”, disse baixinho.
Estava exposta àquele homem. Estava completamente exposta. Se tivesse marcado com “seu” José na saída da Avenida Atlântica, o hotel que ficava o cabeleireiro não permitiria que “essa gente” se aproximasse. Mas na Avenida Copacabana tudo era possível: pessoas de toda a espécie. Pelo menos de espécie diferente da dela. “Da dela?” “Que espécie de ela era para ser ‘da dela’?” Ela – os outros. Mas, mas a morte não nos separa, pensou de repente e seu rosto tomou ar de uma máscara de beleza e não beleza de gente: sua cara por um momento se endureceu.
Pensamento do mendigo: “essa dona de cara pintada com estrelinhas douradas na testa, ou não me dá ou me dá muito pouco”. O correu-lhe então, um pouco cansado: “ou dá quase nada”.
Ela espantada: como praticamente não andava na rua – era de carro de porta à porta – chegou a pensar: ele vai me matar? Estava atarantada e perguntou:
- Quanto é que se costuma dar?
- O que a pessoa pode dar e quer dar - respondeu o mendigo espantadíssimo.
Ela, que não pagava o salão de beleza, o gerente deste mandava cada mês sua conta para a secretária do marido. “Marido”. Ela pensou: o marido o que faria com o mendigo? Sabia que: nada. Eles não fazem nada. E ela – ela era “eles” também. Tudo o que pode dar? Podia dar o banco do marido, poderia lhe dar seu apartamento, sua casa de campo, suas jóias...
Mas alguma coisa que era uma avareza de todo o mundo, perguntou:
- Quinhentos cruzeiros basta? É só o que eu tenho.
O mendigo olhou-a espantado.
- Está rindo de mim, moça?
- Eu?? Não estou não, eu tenho mesmo os quinhentos na bolsa...
Abriu-a, tirou-lhe a nota e estendeu-a humildemente ao homem, quase lhe pedindo desculpas.
O homem perplexo.
E depois rindo, mostrando as gengivas quase vazias:
- Olhe – disse ele -, ou a senhora é muito boa ou não está bem da cabeça... Mas, aceito, não vá dizer depois que roubei, ninguém vai me acreditar. Era melhor me dar trocado.
- Eu não tenho trocado, só tenho essa nota de quinhentos.
O homem pareceu assustar-se, disse qualquer coisa quase incompreensível por causa da má dicção de poucos dentes.
Enquanto isso a cabeça dele pensava: comida, comida, comida boa, dinheiro, dinheiro.
A cabeça dela era cheia de festas, festas, festas. Festejando o quê? Festejando a ferida alheia? Uma coisa os unia: ambos tinham uma vocação por dinheiro. O mendigo gastava tudo o que tinha, enquanto o marido de Carla, banqueiro, colecionava dinheiro. O ganha-pão era a Bolsa de Valores, e inflação, e lucro. O ganha-pão do mendigo era a redonda ferida aberta. E ainda por cima, devia ter medo de ficar curado, adivinhou ela, porque, se ficasse bom, não teria o que comer, isso Carla sabia: “quem não tem bom emprego depois de certa idade...” Se fosse moço, poderia ser pintor de paredes. Como não era, investia na ferida grande em carne viva e purulenta. Não, a vida não era bonita.
Ela se encostou na parede e resolveu deliberadamente pensar. Era diferente porque não tinha o hábito e ela não sabia que pensamento era visão e compreensão e que ninguém podia se intimar assim: pense!
Bem. Mas acontece que resolver era um obstáculo. Pôs-se então a olhar para dentro de si e realmente começaram a acontecer. Só que tinha os pensamentos mais tolos. Assim: esse mendigo sabe inglês? Esse mendigo já comeu caviar, bebendo champanhe? Eram pensamentos tolos porque claramente sabia que o mendigo não sabia inglês, nem experimentara caviar e champanhe. Mas não pôde se impedir de ver nascer em si mais um pensamento absurdo: ele já fez esportes de inverno na Suíça?
Desesperou-se então. Desesperou-se tanto que lhe veio o pensamento feito de duas palavras apenas “Justiça Social”.
Que morram todos os ricos! Seria a solução, pensou alegre. Mas – quem daria dinheiro aos pobres?
De repente – de repente tudo parou. Os ônibus pararam, os carros pararam, os relógios pararam, as pessoas na rua imobilizaram-se – só seu coração batia, e para quê?
Viu que não sabia gerir o mundo. Era uma incapaz, com cabelos negros e unhas compridas e vermelhas. Ela era isso: como uma fotografia colorida fora de foco. Fazia todos os dias a lista do que precisava ou queria fazer no dia seguinte – era desse modo que se ligara ao tempo vazio. Simplesmente ela não tinha o que fazer. Faziam tudo por ela. Até mesmo os dois filhos – pois bem, fora o marido que determinara que teriam dois...
“Tem-se que fazer força para vencer na vida”, dissera-lhe o avô morto. Seria ela, por acaso, “vencedora”? Se vencer fosse estar em plena tarde clara na rua, a cara lambuzada de maquilagem e lantejoulas douradas... Isso era vencer? Que paciência tinha que ter consigo mesma. Que paciência tinha que ter para salvar a sua própria vida. Salvar de quê? Do julgamento? Mas quem julgava? Sentiu a boca inteiramente seca e a garganta em fogo – exatamente como quando tinha que se submeter a exames escolares. E não havia água! Sabe o que é isso – não haver água?
Quis pensar em outra coisa e esquecer o difícil momento presente. Então lembrou-se de frases de um livro póstumo de Eça de Queirós que havia estudado no ginásio: “O lago de Tiberíades resplandeceu transparente, coberto de silêncio, mais azul que o céu, todo orlado de prados floridos, de densos vergéis, de rochas de pórfiro, e alvos terrenos por entre os palmares, sob o voo das rolas.”
Sabia de cor porque, quando adolescente, era muito sensível a palavras e porque desejava para si mesma o destino de resplendor do lago de Tiberíades.
Teve uma vontade inesperadamente assassina: a de matar todos os mendigos do mundo! Somente para que ela, depois da matança, pudesse usufruir em paz seu extraordinário bem-estar.
Não. O mundo não sussurrava.
O mundo gri-ta-va!!! Pela boca desdentada desse homem.
A jovem senhora do banqueiro pensou que não ia suportar a falta de maciez que se lhe jogavam no rosto tão maquilado.
E A festa? Como diria na festa, quando dançasse, como diria ao parceiro que a teria entre os braços... O seguinte: olhe, o mendigo também tem sexo, disse que tinha onze filhos. Ele não vai a reuniões sociais, ele não sai nas colunas do Ibrahim, ou do Zózimo, ele tem fome de pão e não de bolos, ele na verdade só quer comer mingau pois não tem dentes para mastigar carne... “Carne?” Lembrou-se vagamente que a cozinheira dissera que o “filet mignon” subira de preço. Sim. Como poderia ela dançar? Só se fosse uma dança doida e macabra de mendigos.
Não, ela não era mulher de ter chiliques e fricotes e ir desmaiar ou se sentir mal. Como algumas de suas “coleguinhas” de sociedade. Sorriu um pouco ao pensar em termos de “coleguinhas”. Colegas em quê? Em se vestir bem? Em dar jantares para trinta, quarenta pessoas?
Ela mesma aproveitando o jardim no verão que se extinguia dera uma recepção para quantos convidados? Não, não queria pensar nisso, lembrou-se (por que sem o mesmo prazer?) das mesas espalhadas sobre a relva, a luz de vela... “luz de vela”? pensou, mas eu estou doida? Eu caí num esquema? Num esquema de gente rica?
“Antes de casar era de classe média, secretária do banqueiro com quem se casara agora e agora – agora luz de velas. Estou é brincando de viver, pensou, a vida não é isso.”
“A beleza pode ser de uma grande ameaça.” A extrema graça se confundiu com uma perplexidade e uma funda melancolia. “A beleza assusta”. “Se eu não fosse tão bonita teria tido outro destino”, pensou ajeitando as flores douradas sobre os negríssimos cabelos.
Ela uma vez vira uma amiga inteiramente de coração torcido e doído e doido de forte paixão. Então não quisera nunca experimentar. Sempre tivera medo das coisas belas demais ou horríveis demais: é que não sabia em si como responder-lhes e se responderia se fosse igualmente bela ou igualmente horrível.
Estava assustada quando vira o sorriso de Mona Lisa, ali, à sua mão no Louvre. Como se assustara com o homem da ferida ou com a ferida do homem.
Teve vontade de gritar para o mundo: “Eu não sou ruim! Sou um produto nem sei de quê, como saber dessa miséria de alma.”
Para mudar de sentimento – pois que ela não os agüentava e já tinha vontade de, por desespero, dar um pontapé violento na ferida do mendigo -, para mudar de sentimentos pensou: este é o meu segundo casamento, isto é, o marido anterior estava vivo.
Agora entendia por que se casara da primeira vez e estava em leilão: quem dá mais? Quem dá mais? Então está vendida. Sim, casara-se pela primeira vez com o homem que “dava mais”, ela o aceitara porque ele era rico e era um pouco acima dela em nível social. Vendera-se. E o segundo marido? Seu casamento estava findando, ele com duas amantes... e ela tudo suportando porque um rompimento seria escandaloso: seu nome era por demais citado nas colunas sociais. E voltaria ela a seu nome de solteira? Até habituar-se ao seu nome de solteira, ia demorar muito. Aliás, pensou rindo de si mesma, aliás, ela aceitava este segundo porque ele lhe dava grande prestígio. Vendera-se às colunas sociais? Sim. Descobria isso agora. Se houvesse para ela um terceiro casamento – pois era bonita e rica -, se houvesse, com quem se casaria? Começou a rir um pouco histericamente porque pensara: o terceiro marido era o mendigo.
De repente perguntou ao mendigo:
- O senhor fala inglês?
O homem nem sequer sabia o que ela lhe perguntara. Mas, obrigado a responder pois a mulher já o comprara-o com tanto dinheiro, saiu pela evasiva.
- Falo sim. Pois não estou falando agora mesmo com a senhora? Por quê? A senhora é surda? Então vou gritar: FALO.
Espantada pelos enormes gritos do homem, começou a suar frio. Tomava plena consciência de que até agora fingira que não havia os que passam fome, não falam nenhuma língua e que havia multidões anônimas mendigando para sobreviver. Ela soubera sim, mas desviara a cabeça e tampara os olhos. Todos, mas todos – sabem e fingem que não sabem. E mesmo que não fingissem iam ter um mal-estar. Como não teriam? Não, nem isso teriam.
Ela era... Afinal de contas quem era ela?
Sem comentários, sobretudo porque a pergunta não durou um átimo de segundo: pergunta e resposta não tinham sido pensamentos de cabeça, eram de corpo.
Eu sou o Diabo, pensou lembrando-se do que aprendera na infância. E o mendigo é Jesus. Mas – o que ele quer não é dinheiro, é amor, esse homem se perdeu na humanidade como eu também me perdi.
Quis forçar-se a entender o mundo e só conseguiu lembrar-se de fragmentos de frases ditas pelos amigos do marido: “essas usinas não serão suficientes”. Que usinas, santo Deus? as do Ministro Galhardo? teria ele usinas? A “energia elétrica... hidrelétrica”?
E a magia essencial de viver – onde estava agora? Em que canto do mundo? No homem sentado na esquina?
A mola do mundo é dinheiro? fez-se ela a pergunta. Mas quis fingir que não era. Sentiu-se tão, tão rica que teve um mal-estar.
Pensamento do mendigo: “Essa mulher é doida ou roubou o dinheiro porque milionária ela não pode ser”, milionária era para ele apenas uma palavra e mesmo se nessa mulher ele quisesse encarnar uma milionária não poderia porque: onde se viu milionária ficar parada de pé na rua, gente? Então pensou: ela é daquelas vagabundas que cobram caro de cada freguês e com certeza está cumprindo alguma promessa?

Depois.

Depois.

Silêncio.

Mas de repente aquele pensamento gritado:
- Como é que eu nunca descobri que sou também uma mendiga? Nunca pedi esmola mas mendigo o amor de meu marido que tem duas amantes, mendigo pelo amor de Deus que me achem bonita, alegre, aceitável, e minha roupa de alma está maltrapilha...
“Há coisas que nos igualam”, pensou procurando desesperadamente outro ponto de igualdade. Veio de repente a resposta: eram iguais porque haviam nascido e ambos morreriam. Eram, pois, irmãos.
Teve vontade de dizer: olhe, homem, eu também sou uma pobre coitada, a única diferença é que sou rica. Eu... pensou com ferocidade, eu estou perto de desmoralizar o dinheiro ameaçando o crédito do meu marido na praça. Estou prestes a, de um momento para o outro, me sentar no fio da calçada. Nascer foi a minha pior desgraça. Tendo já pagado esse maldito acontecimento, sinto-me com direito a tudo.
Tinha medo. Mas de repente deu o grande pulo de sua vida: corajosamente sentou-se no chão. “Vai ver que ela é comunista!” pensou meio a meio o mendigo. “E como comunista teria direito às suas jóias, seus apartamentos, sua riqueza e até os seus perfumes.”
Nunca mais seria a mesma pessoa. Não que jamais tivesse visto um mendigo. Mas – mesmo este era em hora errada, como levada de um empurrão e derramar por isso vinho tinto em branco vestido de renda. De repente sabia: esse mendigo era feito da mesma matéria que ela. Simplesmente isso. O “porquê” é que era diferente. No plano físico eles eram iguais. Quanto a ela, tinha uma cultura mediana, e ele não parecia saber de nada, nem quem era o Presidente do Brasil. Ela, porém, tinha uma capacidade aguda de compreender. Será que estivera até agora com a Inteligência embutida? Mas se ela já há pouco, que estivera em contato com uma ferida que pedia dinheiro para comer – passou a só pensar em dinheiro? Dinheiro esse que sempre fora óbvio para ela. E a ferida, ela nunca a vira tão de perto...
- A senhora está se sentindo mal?
- Não estou mal... mas não estou bem, não sei...
Pensou: o corpo é uma coisa que estando doente a gente carrega. O mendigo se carrega a si mesmo.
- Hoje no baile a senhora se recupera e tudo volta ao normal – disse José.
Realmente no baile ela reverdeceria seus elementos de atração e tudo voltaria ao normal.
Sentou-se no banco do carro refrigerado lançando antes de partir o último olhar àquele companheiro de hora e meia. Parecia-lhe difícil despedir-se dele, ele era agora o “eu” alterego, ele fazia parte para sempre de sua vida. Adeus. Estava sonhadora, distraída, de lábios entreabertos com se houvesse à beira deles uma palavra. Por um motivo que ela não saberia explicar – ele era verdadeiramente ela mesma. E assim, quando o motorista ligou o rádio, ouviu que o bacalhau produzia nove mil óvulos por ano. Não soube deduzir nada com essa frase, ela que estava precisando de um destino. Lembrou-se de que em adolescente procurara um destino e escolhera cantar. Como parte de sua educação, facilmente lhe arranjaram um bom professor. Mas cantava mal, ela mesma sabia e seu pai, amante das óperas, fingira não notar que ela cantava mal. Mas houve um momento em que ela começou a chorar. O professor perplexo perguntara-lhe o que tinha.
- É que eu tenho medo de, de, de, de, cantar bem...
Mas você canta muito mal, dissera-lhe o professor.
- Também tenho medo, tenho medo também de cantar muito, muito mais mal ainda. Maaaaal mal demais! Chorava ela e nunca teve mais nenhuma aula de canto. Essa história de procurar a arte para entender só lhe acontecera uma vez – depois mergulhara num esquecimento que só agora, aos trinta e cinco anos de idade, através da ferida, precisava ou cantar muito mal ou cantar muito bem – estava desnorteada. Há quanto tempo não ouvia a chamada música clássica porque esta poderia tirá-la do sono automático em que vivia. Eu – estou brincando de viver. No mês que vem ia a New York e descobriu que essa ida era como uma nova mentira, como uma perplexidade. Ter uma ferida na perna – é uma realidade. E tudo na sua vida, desde quando havia nascido, tudo na sua vida fora macio como pulo do gato. 


Correspondência:


Cartas perto do coração (2001) - Organização de Fernando Sabino



O primeiro contato de Fernando Sabino com Clarice Lispector ocorreu no ano de 1944. Ele recebeu o primeiro livro dela, Perto do coração selvagem, com uma dedicatória da autora, ficou entusiasmado e publicou uma resenha. Sabino tinha 20 anos de idade, morava em Belo Horizonte e não sabia que Clarice era, pessoalmente, uma deusa de olhos felinos. Estávamos em plena Segunda Guerra Mundial, Clarice morava em Nápoles e, quando voltou, foi apresentada por Rubem Braga a Fernando Sabino e logo se estabeleceu uma amizade intensa que não seria quebrada nem pela distância: “Fiquei deslumbrado por ela”, confidenciou Sabino. O livro Cartas perto do coração, que está sendo relançado, registra a correspondência entre Fernando Sabino e Clarice Lispector, de 1946 a 1969. As cartas dele foram enviadas do Rio de Janeiro e de Nova York; as dela de Berna, na Suíça, e Washington, nos EUA, onde morou acompanhando o marido diplomata, Maury Gurgel Valente.
Nos tempos em que se conheceram, Sabino tinha porte atlético, estampa de galã, era campeão de natação, vinha de uma família pobre e havia se casado com Helena Valadares, filha do governador de Minas Gerais àépoca, Benedito Valadares. Recebeu de presente de casamento um cartório, o que lhe garantiu uma sobrevivência digna durante boa parte de sua vida. Ele havia publicado em 1941, aos 17 anos, o primeiro livro, a coletânea de contos Os grilos não cantam mais. Clarice estreou em 1943, aos 23 anos, com Perto do coração selvagem, que mereceu generosos elogios de Antonio Candido, Oswald de Andrade e Álvaro Lins, entre outros. Era belíssima, de olhos amendoados e verdes, silenciosa e enigmática.
Em princípio, Berna seria o lugar ideal para abrigar uma escritora com o perfil de Clarice, pois era tranquila, silenciosa, com os chocolates e os relógios marcando uma vida organizada nos mínimos detalhes. No entanto, como lembra Benjamin Moser, autor da biografia Clarice, Nietzsche e Nijinsk ficaram loucos por lá. Clarice sentiu falta da bagunça e da efervescência do Rio de Janeiro: “Berna é linda e calma, a vida cara e gente feia; com a falta de carne, com o peixe, queijo, leite, gente neutra, termino mesmo dando um grito. Falta demônio na cidade”. “Não trabalho mais, Fernando. Passo os dias procurando enganar a minha angústia e procurando não fazer honrar a mim mesma”. Em outro trecho, ela escreve: “A solidão de que sempre precisei me é, ao mesmo tempo, insuportável.”

Aflição e silêncio

No entanto, um dos motivos da aflição de Clarice era o silêncio em torno do seu segundo romance, O lustre, só mereceu referências elogiosas de Sérgio Miliet e Oswald de Andrade, que o qualificou de “aterrorizante”. Clarice encontra em Fernando Sabino um amigo sempre solidário, afetuoso e pragmático: “Estão exagerando no silêncio em torno do seu livro”. As cartas estabelecem um diálogo livre, enveredando pelos mais inusitados temas, numa conversa prá lá de Marrakeshi.
Clarice fala, por exemplo, de sua visita às pirâmides do Cairo, no Egito, reclamando das sensações pré-moldadas de turista: “O problema é sentir alguma coisa que não esteja prevista em um guia”, escreve Clarice. Mais tarde, a escritora evocaria a experiência em uma crônica: “Vi a esfinge. Não a decifrei. Mas ela também não me decifrou. Encaramo-nos de igual para igual. Ela me aceitou e eu a aceitei. Cada um com seu mistério”.
A mudança para Washington foi positiva para Clarice, pois a cidade oferecia opções culturais e contava com uma comunidade significativa de brasileiros. Apesar disso, ela fazia uma observação que caberia quase sem retoques para Berna: “É bonita segundo as várias leis da beleza que não são as minhas. Falta bagunça aqui, e não compreendo cidade sem esta certa confusão. Mas enfim, a cidade não é minha”.
Essa produção tão errática da correspondência revela, no entanto, uma linha de evolução. Em um primeiro momento, dominam inquietações e angústias vagas. Contudo, no decorrer da leitura, é possível observar a preocupação se deslocando para as questões mais concretas da produção das obras literárias de Clarice e Fernando. Como se vê, as cartas revelam uma intensa amizade fundada na palavra.



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Comentários

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